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HARRY POTTER
E A CÂMARA SECRETA
Joanne K. Rowling
SUMÁRIO
Capítulo Um — O Pior Aniversário
Capítulo Dois — O Aviso de Dobby
Capítulo Três — A Toca
Capítulo Quatro — Na Floreios e Borrões
Capítulo Cinco — O Salgueiro Lutador
Capítulo Seis — Gilderoy Lockhart
Capítulo Sete — Sangue Ruim e Vozes Invisíveis
Capítulo Oito — A Festa do Aniversário de Morte
Capítulo Nove — A Pichação na Parede
Capítulo Dez — O Balaço Errante
Capítulo Onze — O Clube dos Duelos
Capítulo Doze — A Poção Polissuco
Capítulo Treze — O Diário Secretíssimo
Capítulo Catorze — Cornélio Fulge
Capítulo Quinze – Aragogue
Capítulo Dezesseis — A Câmara Secreta
Capítulo Dezessete — O Herdeiro de Slytherin
Capítulo Dezoito — A Recompensa de Dobby
CAPÍTULO UM
O Pior Aniversário
Não era a primeira vez que irrompia uma discussão à mesa do
café da
manhã na Rua dos Alfeneiros número 4. O Sr. Válter Dursley
fora acordado nas
primeiras horas da manhã por um pio alto que vinha do quarto
do seu sobrinho
Harry.
— É a terceira vez esta semana! — berrou ele à mesa. — Se
você não
consegue controlar essa coruja, teremos que mandá-la embora!
Harry tentou explicar, mais uma vez.
— Ela está chateada. Está acostumada a voar ao ar livre. Se
eu ao menos
pudesse soltá-la à noite...
— Eu tenho cara de idiota? — rosnou tio Válter, um pedaço de
ovo
pendurado na bigodeira. — Eu sei o que vai acontecer se você
soltar essa coruja.
Ele trocou olhares assustados com sua mulher, Petúnia.
Harry tentou argumentar, mas suas palavras foram abafadas
por um alto e
prolongado arroto dado pelo filho de Dursley, Duda.
— Quero mais bacon.
— Tem mais na frigideira, fofinho — disse tia Petúnia,
voltando os olhos
úmidos para o filho maciço. — Precisamos alimentá-lo bem enquanto
temos
oportunidade... Não gosto do jeito daquela comida da
escola...
— Bobagem, Petúnia, nunca passei fome quando estive em
Smeltings —
disse tio Válter animado. — Duda come bastante, não come
filho?
Duda, que era tão gordo que a bunda sobrava para os lados da
cadeira da
cozinha, sorriu e virou-se para Harry.
— Passe a frigideira.
— Você esqueceu a palavra mágica — disse Harry
irritado.
O efeito desta simples frase no resto da família foi
inacreditável.
Duda ofegou e caiu da cadeira com um baque que sacudiu a
cozinha
inteira; a Sra. Dursley soltou um gritinho e levou as mãos à
boca; o Sr. Dursley
levantou-se com um salto, as veias latejando nas têmporas.
— Eu quis dizer "por favor"! — explicou Harry depressa.
— Não quis dizer...
— QUE FOI QUE JÁ LHE DISSE — trovejou o tio, borrifando
saliva pela
mesa. — COM RELAÇÃO A DIZER ESSA PALAVRA COM "M"
NA NOSSA
CASA?
— Mas eu...
— COMO SE ATREVE A AMEAÇAR DUDA! — berrou tio Válter, dando
um soco na mesa.
— Eu só...
— EU O AVISEI! NÃO VOU TOLERAR A MENÇÃO DA
SUA ANORMALIDADE DEBAIXO DO MEU TETO!
Harry olhava do rosto purpúreo do tio para o rosto pálido da tia, que
tentava pôr Duda de pé.
— Está bem — disse Harry —, está bem...
O tio Válter se sentou, respirando como um rinoceronte sem fôlego e
observando Harry com atenção pelos cantos dos olhinhos
penetrantes.
Desde que Harry voltara para passar as férias de verão em
casa, tio Válter
o tratava como uma bomba que fosse explodir a qualquer momento,
porque Harry Potter não era um menino normal. Aliás, ele era
tão anormal quanto
era possível ser.
Harry Potter era um bruxo — um bruxo que acabara de terminar
o primeiro
ano na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. E se os
Dursley se sentiam
infelizes de tê-lo ali nas férias, isso não era nada
comparado ao que Harry sentia.
Sentia tanta falta de Hogwarts que era como se tivesse uma
dor de barriga
permanente.
Sentia falta do castelo, com seus fantasmas e suas passagens
secretas, das aulas (exceto talvez a de Snape, o professor
de Poções), do correio
trazido pelas corujas, dos banquetes no Salão Principal, de
dormir em uma cama
de baldaquino no dormitório da torre, das visitas ao
guarda-caças, Hagrid, em sua
cabana na orla da Floresta Proibida nos terrenos da escola,
e, principalmente, do
Quadribol, o esporte mais popular no mundo dos bruxos (seis
postes altos pata
delimitar o gol, quatro bolas voadoras e catorze jogadores
montados em
vassouras).
Todos os livros de feitiços, a varinha, as vestes, o
caldeirão e a vassoura
Nimbus 2000, último tipo, pertencentes à Harry tinham sido
trancados no
armário debaixo da escada pelo tio Válter no instante em que o sobrinho pisara
em casa. Que importava aos Dursley se Harry perdesse o lugar
no time de
Quadribol da Casa porque não praticara o verão inteiro? O
que significava para os
Dursley que Harry voltasse para a escola sem os deveres de
casa feitos? Os
Dursley eram o que bruxos chamavam de trouxas (sem um pingo
de sangue
mágico nas veias) e na opinião deles ter um bruxo na família
era uma questão da
mais profunda vergonha. Tio Válter havia até passado o
cadeado na gaiola da
coruja de Harry Edwiges, para impedi-la de levar mensagens
para alguém no
mundo dos bruxos.
Harry não se parecia nada com o resto da família. Tio Válter
era
corpulento e sem pescoço, com uma enorme bigodeira preta; a
tia Petúnia
tinha uma cara de cavalo e era ossuda; Duda era louro,
rosado e lembrava um
porquinho. Já o Harry era pequeno e magricela, com olhos verdes
vivos e cabelos
muito pretos que estavam sempre despenteados. Usava óculos
redondos e, na
testa, tinha uma cicatriz fina em forma de raio.
Era esta cicatriz que tornava Harry tão diferente, mesmo
para um bruxo. A
cicatriz era o único vestígio do seu passado muito misterioso, da razão por
que fora deixado no batente dos Dursley, onze anos antes.
Com a idade de um ano, Harry por alguma razão sobrevivera
aos feitiços
do maior bruxo das trevas de todos os tempos, Lord Voldemort, cujo nome a
maioria dos bruxos e bruxas ainda tinha medo de pronunciar.
Os pais de Harry
morreram ao serem atacados por Voldemort, mas o garoto
escapara com a
cicatriz em forma de raio e por alguma razão — ninguém entendia muito bem —
os poderes de Voldemort tinham sido destruídos na hora em
que não conseguira
matá-lo.
Assim, Harry fora criado pela irmã e o cunhado de sua
falecida mãe.
Passara dez anos com os Dursley, sem nunca compreender por
que fazia
coisas estranhas acontecerem o
tempo todo sem querer,
acreditando na história
dos Dursley de que sua cicatriz resultara do acidente de
automóvel que matara
seus pais.
Então, há exatamente um
ano, Hogwarts escrevera a Harry,
e a história
toda fora revelada. O garoto ocupara sua vaga na escola de
bruxaria, onde ele e
sua cicatriz eram famosos... Mas agora o ano letivo
terminara, e ele voltara à casa
dos Dursley para passar o verão, voltara a ser tratado como um cachorro que
andara se esfregando em alguma coisa fedorenta.
Os Dursley nem sequer se lembraram que hoje, por acaso, era
o décimo
segundo aniversário de Harry. Naturalmente ele não
alimentava grandes
esperanças; seus parentes jamais tinham lhe dado um presente
de verdade, muito
menos um bolo — mas esquecê-lo completamente...
Naquele momento, o tio Válter pigarreou cheio de pose e
disse:
— Hoje, como todos sabemos, é um dia muito importante.
Harry ergueu os olhos, mal se atrevendo a acreditar.
— Hoje talvez venha a ser o dia em que vou fechar o maior
negócio de
minha carreira.
Harry tornou a se concentrar em sua torrada. Naturalmente,
pensou com
amargura, tio Válter estava falando daquele jantar idiota.
Não falava de outra
coisa havia duas semanas. Um construtor rico e sua mulher
vinham jantar e tio
Válter tinha esperanças de receber um grande pedido (a
companhia de tio Válter
fabricava brocas).
— Acho que devemos repassar o programa mais uma vez — disse
ele. —
Precisamos todos estar em posição às oito horas.
— Petúnia, você vai estar...?
— Na sala de visitas — disse tia Petúnia sem pestanejar — esperando
para dar as boas vindas como manda a etiqueta.
— Ótimo, ótimo. E o Duda?
— Vou esperar para abrir a porta. — Duda deu um sorriso desagradável
e
hipócrita. — "Posso guardar os seus casacos, Sr. e Sra.
Mason?”
— Eles vão adorá-lo! — exclamou tia Petúnia arrebatada.
— Excelente Duda — disse tio Válter. Em seguida dirigiu-se
zangado a
Harry. — E você?
— Vou ficar no meu quarto, sem fazer barulho, fingindo que
não estou em
casa — disse Harry monotonamente.
— Exatamente — disse tio Válter, sarcástico. — Eu levo o
casal para a
sala de visitas, apresento você, Petúnia, e sirvo os
drinques. Às oito e quinze...
— Eu anuncio o jantar — disse tia Petúnia.
— E Duda, você vai dizer...
— Posso acompanhá-la à sala de jantar, Sra. Mason? — disse
Duda
oferecendo o braço gordo a uma mulher invisível.
— Meu perfeito cavalheirinho! — fungou tia Petúnia.
— E você? — perguntou tio Válter malevolamente a Harry.
— Vou estar no meu quarto, sem fazer nenhum barulho,
fingindo que não
estou em casa — respondeu Harry sem emoção.
— Precisamente. Agora vamos procurar fazer uns elogios
realmente bons
ao jantar. Petúnia, alguma sugestão?
— Válter me contou que o senhor é um excelente jogador de golfe, Sr.
Mason... Onde foi que a senhora comprou o seu vestido, me
conte, por favor Sra.
Mason...
— Perfeito... Duda?
— Que tal... Tivemos que fazer uma redação na escola sobre o
nosso
herói, Sr.
Mason, e eu escrevi sobre o senhor.
Essa foi demais tanto para Petúnia quanto para Harry. Tia
Petúnia
debulhou-se em lágrimas e abraçou o filho, e Harry mergulhou
embaixo da mesa
para que não o vissem rindo.
— E você, seu moleque?
Harry fez força para manter a cara séria enquanto se
endireitava.
— Vou estar no meu quarto, sem fazer nenhum barulho,
fingindo que não
estou em casa.
— E pode ter certeza que vai — disse tio Válter com vigor.
— Os Mason não sabem que você existe e vão continuar sem
saber.
Quando terminar o jantar, você leva a Sra. Mason de volta à
sala de visitas para o
cafezinho, Petúnia, e eu vou puxar o assunto das brocas. Com
alguma sorte, o
contrato vai estar assinado e selado antes do noticiário das
dez. Amanhã a estas
horas vamos estar procurando uma casa de férias em Majorca
para comprar.
Harry não conseguiu se animar muito com a idéia. Não achava
que os
Dursley fossem gostar mais dele em Majorca do que gostavam
na Rua dos
Alfeneiros.
— Tudo certo, estou indo à cidade apanhar os smokings para
mim e
Duda. E você — rosnou ele para Harry —, trate de ficar fora
do caminho de sua
tia enquanto ela está limpando a casa.
Harry saiu pela porta dos fundos. Fazia um dia claro e
ensolarado. Ele
atravessou o jardim, se largou em cima de um banco e cantou
baixinho:
— Parabéns para mim... Parabéns para mim...
Nada de cartões, nada de presentes e ia passar a noite
fingindo que não
existia. Ele contemplou infeliz, a sebe do jardim. Nunca se
sentira tão solitário.
Mais do que qualquer outra coisa em Hogwarts, mais até que
do jogo de
Quadribol, Harry sentia falta dos seus melhores amigos, Rony
Weasley
e Hermione Granger. Mas parecia que os amigos não estavam
sentindo falta dele.
Nenhum dos dois lhe escrevera o verão inteiro, embora Rony
tivesse dito que o
convidaria para passar uns dias em sua casa.
Inúmeras vezes, Harry estivera a ponto de usar a magia para
destrancar a
gaiola de Edwiges e mandá-la a Rony e Mione com uma carta, mas não valia o
risco.
Bruxos menores de idade não podiam usar a magia fora da
escola. Harry
não contara isso aos Dursley; sabia que era apenas o terror que sentiam de que
ele os transformasse em besouros bosteiros que os impedira
de trancá-lo no
armário embaixo da escada com a varinha e a vassoura. Mas,
nas primeiras
semanas de sua volta, Harry se divertira em murmurar
palavras sem sentido,
baixinho e em observar Duda sair correndo da sala o mais
depressa que suas
pernas gordas podiam agüentá-lo. Mas o longo silêncio de
Rony e Mione fizera
com que Harry se sentisse tão desligado do mundo da magia
que até atormentar
Duda tinha perdido a graça — e agora os dois amigos tinham
se esquecido do seu
aniversário.
O que ele não daria agora para receber uma mensagem de
Hogwarts? De
algum bruxo ou bruxa? Conseguiria até se alegrar com a visão do seu
arquiinimigo, Draco Malfoy, só para ter certeza de que tudo
não passara de um
sonho...
Não que o ano todo em Hogwarts tivesse sido uma brincadeira.
No
finzinho do último trimestre, Harry se vira frente a frente
com Lord Voldemort em
pessoa. O bruxo poderia ser astuto, ainda estava decidido a
retomar o poder.
Harry escorregara por entre as garras de Voldemort uma segunda vez, mas fora
por um triz, e mesmo agora, semanas depois, Harry continuava
a acordar à noite,
encharcado de suor frio, imaginando onde estaria Voldemort neste momento,
lembrando-se do seu rosto lívido, dos seus olhos arregalados
e delirantes...
Harry endireitou-se de repente no banco do jardim. Estivera
olhando
distraidamente para a sebe — e a sebe estava olhando para
ele.
Dois enormes olhos verdes tinham aparecido entre as folhas.
O garoto levantou-se de um salto no mesmo instante em que uma voz
debochada atravessou o gramado.
— Eu sei que dia é hoje — cantarolou Duda, andando feito um
pato em
sua direção.
Os olhos enormes piscaram e desapareceram.
— Quê? — disse Harry sem despregar os olhos do lugar onde os tinha
visto.
— Eu sei que dia é hoje — repetiu Duda, aproximando-se.
— Muito bem — disse Harry. — Até que enfim você aprendeu os
dias da
semana.
— Hoje é o seu aniversário — caçoou Duda. — Como é que você
não
recebeu nenhum cartão? Será que você não tem amigos nem
naquele lugar
esquisito?
— E melhor não deixar sua mãe ouvir você falando da minha escola —
disse Harry com toda a calma.
Duda puxou para cima as calças que estavam escorregando pelo
seu
traseiro gordo.
— Por que é que você estava olhando para a sebe? —
perguntou,
desconfiado.
— Estou tentando decidir qual seria o melhor feitiço para
tocar fogo nela
— respondeu Harry.
Duda recuou aos tropeços na mesma hora, com uma expressão de
pânico
no rosto.
— Você não p-pode, papai disse que você não pode fazer
mágicas, disse
que expulsa você de casa, e você não tem para onde ir, você não tem nenhum
amigo que possa ficar com você...
— Jigueri pokueri —
disse Harry com ferocidade. — Ohocus
pocus
eskuigli wigli...
— MÃããããe! — berrou Duda, tropeçando nos próprios pés
enquanto
disparava para dentro de casa. — Mããããe! Ele está fazendo aquilo que você
sabe!
Harry pagou muito caro por aquele momento de prazer. Como
nem Duda
nem a cerca tinham sido molestados, tia Petúnia viu que ele
não tinha feito mágica
alguma, mas ainda assim ele precisou se encolher quando a
tia tentou acertar sua
cabeça com uma pesada frigideira cheia de sabão. Em seguida
ela lhe deu
trabalho para fazer, com a promessa de que ele não iria
comer nada até terminar.
Enquanto Duda ficou por ali apreciando e se enchendo de
sorvete, Harry
lavou as janelas, lavou o carro, aparou o gramado, limpou os canteiros, podou e
regou as roseiras e repintou o banco do jardim. O sol escaldava lá no alto,
queimando sua nuca.
Harry sabia que não devia ter mordido a isca de Duda, mas o
primo
dissera exatamente aquilo que ele andara pensando com os
seus botões... Talvez
não tivesse amigos em Hogwarts...
Gostaria que eles pudessem ver o famoso Harry Potter agora,
pensou
com selvageria enquanto espalhava estrume nos canteiros, com
as costas doendo
e o suor escorrendo pelo rosto.
Eram sete e meia da noite quando finalmente, exausto, ele
ouviu tia
Petúnia chamá-lo.
— Venha já aqui! E ande em cima dos jornais!
Harry transferiu-se com prazer para a sombra da cozinha
reluzente. Em
cima da geladeira estava o pudim do jantar: uma
montanha de creme batido e
violetas cristalizadas. Um lombo de porco assado chiava no
forno.
— Coma depressa! Os Mason não vão demorar a chegar! — disse
com
rispidez tia Petúnia, apontando para as duas fatias de pão e
um pedaço de queijo
em cima da mesa da cozinha. Ela já pusera o vestido de noite
salmão.
Harry lavou as mãos e engoliu seu jantar miserável. No
instante em que
terminou, a tia retirou seu prato.
— Já para cima! Depressa!
Ao passar pela porta da sala de visitas, Harry vislumbrou o
tio e Duda de
gravata borboleta e smoking. Mal acabara de chegar ao
patamar do primeiro
andar quando a campainha tocou, e a cara furiosa do tio
Válter apareceu ao pé da
escada.
— Lembre-se, seu moleque, nem um pio...
Harry foi para o seu quarto na ponta dos pés, se esgueirou
para dentro,
fechou a porta e se virou para cair na cama.
O problema foi que já havia alguém sentado nela.
CAPÍTULO DOIS
O Aviso de Dobby
Harry conseguiu não gritar, mas foi por pouco. A criaturinha
em sua cama
tinha orelhas grandes como as de um morcego e olhos
esbugalhados e verdes do
tamanho de bolas de tênis. Harry percebeu na mesma hora que
era aquilo que o
andara observando na sebe do jardim àquela manhã.
Enquanto se entreolhavam, Harry ouviu a voz de Duda no hall.
— Posso guardar os seus casacos, Sr. e Sra. Mason?
A criatura escorregou da cama e fez uma reverencia tão
exagerada que
seu nariz, comprido e fino, encostou no tapete.
Harry reparou que ela vestia uma coisa parecida com uma
fronha velha,
com fendas para enfiar as pernas e os braços.
— Ah... Alô — cumprimentou Harry nervoso.
— Harry Potter! — exclamou a criatura com uma voz esganiçada
que
Harry teve certeza de que seria ouvida no andar de baixo. —
Há tanto tempo que
Dobby quer conhecê-lo, meu senhor... É uma grande honra...
— Ob-obrigado — respondeu Harry, andando encostado à parede
para se
largar na cadeira da escrivaninha, perto de Edwiges, que
dormia em sua
gaiola espaçosa. Teve vontade de perguntar "Que coisa é
você?", mas achou que
poderia parecer muito mal-educado, e em vez disso perguntou:
— Quem e você?
— Dobby, meu senhor. Apenas Dobby. Dobby o elfo doméstico —
disse a
criatura.
— Ah... É mesmo? Ah... Não quero ser grosseiro nem nada,
mas... A hora
não é muito própria para ter um elfo doméstico no meu
quarto.
Ouviu-se a risada aguda e falsa de tia Petúnia na sala. O
elfo baixou a
cabeça.
— Não que eu não esteja contente de conhecê-lo — acrescentou
Harry
depressa —, mas, ah, tem alguma razão especial para você
estar aqui?
— Ah, claro, meu senhor — disse Dobby muito sério. — Dobby
veio dizer
ao senhor, meu senhor... É difícil, meu senhor.. Dobby fica
se perguntando por
onde começar...
— Sente-se — disse Harry gentilmente, apontando para a cama.
Para seu horror, o elfo caiu no choro — um choro muito alto.
— S-sen-te-se! — chorou. — Nunca... Nunca na vida...
Harry pensou ter ouvido as vozes no andar de baixo
hesitarem.
— Me desculpe — sussurrou. — Não quis ofendê-lo nem nada...
— Ofender Dobby! — engasgou-se o elfo. — Dobby nunca foi
convidado a
se sentar por um bruxo... Como um igual.
Harry, tentando ao mesmo tempo fazer o elfo se calar e dar a
impressão
de consolá-lo, levou Dobby de volta à cama, onde o elfo se
sentou entre soluços,
parecendo uma boneca enorme e muito feia. Por fim ele
conseguiu se controlar e
se sentou, os grandes olhos fixos em Harry com uma expressão
de aquosa
admiração.
— Vai ver você nunca encontrou muitos bruxos decentes —
disse Harry
para animá-lo.
Dobby sacudiu a cabeça. Depois, sem aviso, saltou da cama e
começou a
bater a cabeça, furiosamente na janela, gritando "Dobby
mau! Dobby mau!”
— Não... Que é que está fazendo? — Harry sibilou, levantando-se
depressa para puxar Dobby de volta para a cama. Edwiges
acordara com um
pio particularmente alto e batia as asas assustada contra as
grades da gaiola.
— Dobby teve que se castigar, meu senhor — disse o elfo, que
ficara
ligeiramente vesgo. — Dobby quase falou mal da própria
família, meu senhor..
— Sua família?
— A família de bruxos a que Dobby serve, meu senhor... Dobby
é um
elfo doméstico, obrigado a servir a uma casa e a uma família
para sempre...
— E eles sabem que você está aqui? — perguntou Harry
curioso.
Dobby estremeceu.
— Ah, não senhor, não... Dobby terá que se castigar com a
maior
severidade por ter vindo vê-lo, meu senhor. Dobby terá que
prender as orelhas na
porta do forno por causa disto. Se eles vierem, a saber, meu
senhor...
— Mas eles não vão reparar se você prender as orelhas na
porta do
forno?
— Dobby duvida meu senhor. Dobby está sempre tendo que se
castigar
por alguma coisa, meu senhor. Eles nem ligam para Dobby, meu
senhor. Às
vezes me lembram de cumprir uns castigos a mais...
— Por que você não vai embora? Foge?
— Um elfo doméstico tem que ser libertado, meu senhor. E a
família
nunca vai libertar Dobby... Dobby vai servir à família até
morrer, meu senhor...
Harry ficou olhando.
— E eu achei que era ruim continuar aqui mais quatro semanas. Isto faz
os Dursley parecerem quase humanos. E ninguém pode ajudá-lo?
Eu não posso?
Quase imediatamente Harry desejou não ter falado. Dobby
desmanchou-se outra vez em guinchos de gratidão.
— Por favor — Harry sussurrou nervoso —, por favor, fique quieto. Se
os Dursley ouvirem alguma coisa, se souberem que você esta
aqui...
— Harry Potter pergunta se pode ajudar Dobby... Dobby ouviu
falar de sua
grandeza, senhor, mas de sua bondade Dobby nunca soube...
Harry, que estava sentindo o rosto ficar decididamente
quente, disse:
— Seja o que for que você ouviu sobre a minha grandeza é
tudo
bobagem. Não sou sequer o primeiro da minha série em
Hogwarts; Hermione, sim,
ela...
Mas se calou depressa, porque pensar em Mione doía.
— Harry Potter é humilde e modesto — disse Dobby, reverente,
as órbitas
dos olhos brilhando. — Harry Potter não fala de sua vitória
sobre Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado...
— Voldemort?
Dobby cobriu as orelhas com as mãos e gemeu.
— Não fale o nome dele, senhor! Não fale o nome dele!
— Desculpe — disse Harry depressa. — Sei que muita gente não
gosta de
falar. Meu amigo Rony...
E calou-se outra vez. Pensar em Rony também doía.
Dobby curvou-se em direção a Harry, seus olhos redondos
parecendo
fatais.
— Dobby ouviu falar — comentou com voz rouca — que Harry
Potter
encontrou o Lord das Trevas pela segunda vez, faz pouco tempo... Que Harry
Potter escapou novamente.
Harry confirmou com a cabeça e os olhos de Dobby, de
repente, brilharam
de lágrimas.
— Ah, meu senhor — exclamou, secando o rosto com a ponta da
fronha
suja que usava. — Harry Potter é valente e audacioso! Já
enfrentou tantos
perigos! Mas Dobby veio proteger Harry Potter, alertá-lo, mesmo que ele tenha
que prender as orelhas na porta do forno depois... Harry
Potter não deve voltar à
Hogwarts.
Fez-se um silêncio interrompido apenas pelo tinido dos talheres lá
embaixo e o reboar distante da voz do tio Válter.
— Q-quê? — gaguejou Harry. — Mas eu tenho que voltar, o trimestre
começa em primeiro de setembro. É só o que me anima a viver. Você não sabe
o que passo aqui. O meu lugar não é aqui. O meu lugar é no
seu mundo, em
Hogwarts.
— Não, não, não — guinchou Dobby, sacudindo a cabeça com
tanta força
que as orelhas esvoaçaram. — Harry Potter deve ficar onde
está seguro. Ele
é grande demais, bom demais, para perder. Se Harry Potter
voltar a Hogwarts, vai
encontrar um perigo mortal.
— Por quê? — perguntou Harry surpreso.
— Há uma trama, Harry Potter. Uma trama para fazer coisas terríveis
acontecerem na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts este
ano — sussurrou
Dobby, tomado de repentina tremedeira. — Dobby sabe disso há meses, meu
senhor. Harry Potter
não deve se expor ao perigo. Ele é
demasiado importante,
meu senhor!
— Que coisas terríveis? — perguntou Harry na mesma hora. —
Quem
está planejando essas coisas?
Dobby fez um barulho engraçado como se engasgasse e em
seguida
bateu com a cabeça na parede num frenesi.
— Está bem! — exclamou Harry, agarrando o braço do elfo para
fazê-lo
parar. — Você não pode me dizer eu compreendo. Mas por que é
que você está
alertando a mim? — Um pensamento súbito e desagradável lhe
ocorreu. —
Espere aí, isso não tem nada a ver com Vol... Desculpe...
Com o Você-Sabe-Quem, tem? Você só precisa fazer com a cabeça sim ou não — acrescentou
ele
depressa quando a cabeça de Dobby voltou a se inclinar de
modo preocupante
para o lado da parede.
— Não... Não Ele-que-Não-Deve-Ser-Nomeado, meu senhor.
Mas os olhos de Dobby se arregalaram e ele parecia estar
tentando dar
uma indicação ao garoto. Mas Harry, no entanto, não entendeu
nada.
Dobby sacudiu a cabeça, os olhos mais arregalados que nunca.
— Então não consigo pensar quem mais teria uma chance de
fazer
acontecer coisas terríveis em Hogwarts — disse Harry. —
Quero dizer, tem o
Dumbledore, você sabe quem é Dumbledore, não sabe?
Dobby inclinou a cabeça.
— Alvo Dumbledore é o maior diretor que Hogwarts já teve. Dobby sabe
disso, meu senhor Dobby ouviu dizer que os poderes de
Dumbledore se rivalizam
com os de Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado, no auge de sua
força. Mas, meu
senhor.. — a voz de Dobby se transformou em um sussurro
urgente — há poderes
que Dumbledore não... Poderes que nenhum bruxo decente...
E antes que Harry pudesse impedi-lo, Dobby saltou da cama, agarrou o
abajur da escrivaninha de Harry e começou a se golpear na
cabeça, com ganidos
de furar os tímpanos.
Fez-se um silêncio repentino no andar de baixo. Dois segundos depois,
Harry, com o coração batendo loucamente, ouviu tio Válter
entrar no corredor
falando:
— Duda deve ter deixado a televisão ligada outra vez, o
pestinha!
— Depressa! Dentro do armário! — sibilou Harry, empurrando Dobby,
fechando a porta e se atirando na cama bem na hora em que a
maçaneta girou.
— Que... Diabo... Você... Esta... Fazendo? — disse tio
Válter por entre os
dentes cerrados, o rosto horrivelmente próximo do de Harry.
— Você acabou de
estragar o fecho da minha piada sobre o golfista japonês...
Mais um ruído e você
vai desejar nunca ter nascido, moleque!
Ele saiu do quarto pisando forte.
Trêmulo, Harry deixou Dobby sair do armário.
— Está vendo como é aqui? — perguntou. — Está vendo por que
preciso
voltar para Hogwarts? É o único lugar onde tenho... Acho que tenho amigos.
— Amigos que nem escrevem a Harry Potter? — perguntou Dobby
manhoso.
— Acho que eles estiveram... Espere aí — disse Harry
amarrando a cara.
— Como é que você sabe que meus amigos não têm escrito?
Dobby arrastou os pés.
— Harry Potter não deve se zangar com Dobby. Dobby fez isso
para ajudar!
— Você andou interceptando minhas cartas?
— Dobby está com elas aqui, meu senhor — respondeu o elfo.
Saindo de
fininho do alcance de Harry, ele puxou um maço grosso de
envelopes de
dentro da roupa. Harry conseguiu distinguir a letra
caprichosa de Mione, os
garranchos de Rony e até umas garatujas que pareciam ter
vindo do guarda-caças
de Hogwarts, Hagrid.
Dobby piscou ansioso para Harry.
— Harry Potter não deve se zangar... Dobby tinha
esperanças... Se Harry
Potter achasse que os amigos tinham esquecido dele... Harry
Potter talvez não
quisesse voltar à escola, meu senhor...
Harry não estava ouvindo. Tentou agarrar as cartas, mas
Dobby saltou
para longe do seu alcance.
— Harry Potter as receberá meu senhor, se der a Dobby sua
palavra de
que não vai voltar a Hogwarts. Ah, meu senhor, este é um perigo que o
senhor não deve enfrentar! Diga que não vai voltar meu
senhor!
— Não — respondeu Harry zangado. — Entregue-me as cartas dos
meus
amigos!
— Então Harry Potter não deixa a Dobby outra escolha — disse
o elfo
triste.
Antes que Harry pudesse se mexer, Dobby se precipitou para a
porta do
quarto, abriu-a e correu escada abaixo.
A boca seca, o estômago revirando, Harry saltou atrás dele,
tentando não
fazer barulho. Pulou os últimos seis degraus, caindo como um
gato no tapete
da entrada, procurando Dobby por todo lado. Da sala de
jantar ele ouviu tio Válter
dizer:
— Conte a Petúnia aquela história engraçada dos encanadores
americanos, Sr. Mason. Ela anda doida para ouvir...
Harry correu pelo corredor em direção à cozinha e sentiu o
coração parar.
A obra-prima de tia Petúnia, aquele pudim coberto de creme e
violetas
cristalizadas estava flutuando junto ao teto. Em cima de um
guarda-louça no
canto, encontrava-se agachado Dobby.
— Não — disse Harry quase sem voz. — Por favor... Eles vão
me matar...
— Harry Potter deve prometer que não vai voltar à escola...
— Dobby... Por favor...
— Prometa meu senhor...
— Não posso!
Dobby lançou-lhe um olhar trágico.
— Então Dobby vai fazer isso, meu senhor, pelo bem de Harry
Potter.
O pudim caiu no chão com um baque de fazer parar o coração.
O creme
sujou as janelas e as paredes quando o prato se espatifou.
Com um estalido que
parecia uma chicotada, Dobby desapareceu.
Ouviram-se gritos vindos da sala de jantar e tio Válter
irrompeu pela
cozinha onde encontrou Harry, paralisado de choque, coberto
com o pudim de tia
Petúnia da cabeça aos pés.
A princípio, pareceu que o tio Válter ia conseguir explicar
a coisa toda.
("É o nosso sobrinho... Muito perturbado... Ver
estranhos o perturba, então
nós o mantemos no primeiro andar") Ele tangeu os Mason,
muito chocados, de
volta à sala de jantar, prometeu a Harry que ia chicoteá-lo
e deixá-lo
quase morto quando os Mason fossem embora, e lhe entregou um
esfregão.
Tia Petúnia desencavou um sorvete do congelador e Harry,
ainda
tremendo, começou a limpar a cozinha com o esfregão.
Tio Válter talvez ainda tivesse conseguido fechar o negócio,
se não fosse
pela coruja.
Tia Petúnia estava oferecendo uma caixa de bombons de
hortelã, depois
do jantar, quando uma enorme coruja mergulhou pela janela da
sala de jantar,
deixou cair uma carta na cabeça da Sra. Mason e tornou a
sair. A Sra. Mason
berrou como uma alma penada e saiu porta afora gritando
que havia doidos lá
dentro. O Sr. Mason se demorou o suficiente para dizer aos
Dursley que sua
mulher tinha um medo mortal de pássaros de qualquer tipo e
tamanho, e para
perguntar se aquilo era a idéia que faziam de uma brincadeira.
Harry ficou na cozinha, segurando o esfregão à procura de
apoio, quando
tio Válter avançou para ele, um brilho demoníaco nos
olhinhos miúdos.
— Leia isto! — sibilou malignamente, sacudindo a carta que a
coruja
entregara. — Vamos... Leia isso!
Harry apanhou a carta. Não continha votos de feliz
aniversario.
“Prezado Senhor Potter, Fomos informados que um feitiço
de levitação foi usado esta noite em seu local de residência
às
9:12h. Como o senhor sabe, bruxos de menor idade não tem
permissão para fazer feitiços fora da escola e, a continuar esta
prática, o senhor poderá ser expulso da referida escola
(Decreto
para restrição racional da prática de bruxaria por menores, 1875,
parágrafo C).
Gostaríamos também de lembrar-lhe que qualquer
atividade mágica que possa chamar a atenção da comunidade
não mágica (trouxa) é uma infração grave, conforme seção 13
do
Estatuto de Sigilo da Confederação Internacional de Bruxos.
Boas férias!
Mafalda Hopkirk
Escritório de Controle do Uso Indevido de Mágica
Ministério da Magia”
Harry ergueu os olhos da carta e engoliu em seco.
— Você não nos disse que não tinha permissão de usar mágica
fora da
escola — disse tio Válter, um brilho demente dançando nos
olhos. — Esqueceu-se
de mencionar... Vai ver lhe escapou...
O tio veio avançando para Harry como um grande buldogue, os
dentes
arreganhados.
— Muito bem, tenho novidades para você, seu moleque... Vou
prendê-lo...
Você nunca mais vai voltar para aquela escola... Nunca... E
se tentar se soltar
por mágica, eles é que vão expulsá-lo!
E dando risadas como um maníaco, arrastou Harry para o
quarto.
Tio Válter não faltou com sua palavra. Na manha seguinte,
ele pagou um
homem para instalar grades
na janela de Harry. Ele mesmo instalou a portinhola
na porta do quarto, para que, três vezes por dia, eles
pudessem empurrar
pequenas quantidades de comida para dentro. Soltavam Harry
de manhã e de
noite para usar o banheiro.
A exceção disso, ele permanecia preso no quarto, dia e noite.
Três dias depois, os Dursley
continuavam a não dar sinais de
compadecimento, e Harry não via nenhuma saída para sua
situação. Deitava-se
na cama observando o sol se pôr por trás das grades da
janela e se perguntava,
infeliz, o que ia lhe acontecer.
De que adiantava se libertar do quarto por meio de mágica se
Hogwarts o
expulsaria por isso? Contudo, a vida na Rua dos Alfeneiros atingira seu ponto
crítico.
Agora que os Dursley sabiam que não iam acordar transformados em
morcegos comedores de frutas, Harry perdera sua única arma.
Dobby talvez o
tivesse salvo dos horríveis acontecimentos em Hogwarts, mas
do jeito que as
coisas caminhavam, ele provavelmente ia morrer de fome.
A portinhola bateu e a mão da tia Petúnia surgiu empurrando
uma tigela
de sopa em lata para dentro do quarto. Harry, cujas entranhas doíam de tanta
fome, saltou da cama e apanhou-a. A sopa estava gelada, mas
ele bebeu metade
de um gole só. Depois, atravessou o quarto até a gaiola de
Edwiges e empurrou
as verduras moles do fundo da tigela para a bandeja vazia da
coruja. Ela
sacudiu as penas e lhe lançou um olhar de profundo nojo.
— Não adianta empinar o bico para a comida: isto é só o que
temos —
disse Harry sério.
Ele repôs a tigela vazia ao lado da portinhola e se deitou
na cama,
sentindo-se mais faminto do que estivera antes da sopa.
Supondo que continuasse vivo dali a quatro semanas, o que aconteceria
se não se apresentasse em Hogwarts? Mandariam alguém para
saber por que ele
não voltara? Conseguiriam obrigar os Dursley a soltá-lo?
O quarto foi escurecendo. Exausto, com a barriga roncando, a
cabeça
girando com a mesma pergunta irrespondível, Harry mergulhou
num sono agitado.
Sonhou que estava sendo exibido num zoológico, com uma
etiqueta presa
à gaiola em que se lia: BRUXO MENOR DE IDADE. As pessoas o
observavam
por trás das grades, faminto e fraco, deitado numa cama de
palha. Ele viu o rosto
de Dobby na multidão e gritou pedindo ajuda, mas Dobby
respondeu: "Harry Potter
está seguro aí, meu senhor!" e desapareceu. Então os
Dursley apareceram e
sacudiram as grades da gaiola, rindo-se dele.
— Parem — murmurou Harry enquanto o barulho das grades martelava
em sua cabeça dolorida. — Me deixem em paz... Parem com isso... Estou
tentando dormir...
Ele abriu os olhos. O luar entrava pelas grades da janela. E alguém o
espiava pelas grades: alguém de rosto sardento, cabelos
vermelhos e
nariz comprido.
Rony Weasley se achava do lado de fora da janela de Harry.
CAPÍTULO TRÊS
A Toca
— Rony! — murmurou Harry, deslizando furtivamente até a
janela e
abrindo-a de modo que pudessem conversar através das grades. — Rony, como
foi que você... Que é...?
O queixo de Harry caiu quando o impacto do que via o atingiu
por inteiro.
Rony estava debruçado na janela traseira de um velho carro
turquesa,
estacionado no ar. Do banco dianteiro sorriam, para Harry,
Fred e Jorge, os
irmãos gêmeos de Rony, mais velhos que ele.
— Tudo bem, Harry? — perguntou Jorge.
— Que é que está acontecendo? — perguntou Rony. — Por que é
que
você não tem respondido às minhas cartas? Convidei-o a nos
visitar umas doze
vezes e então papai chegou em casa e disse que você tinha recebido uma
advertência oficial por usar mágica na frente de trouxas...
— Não fui eu... E como é que ele soube?
— Ele trabalha no Ministério. Você sabe que não temos
permissão para
usar mágica fora da escola...
— Olha quem fala — respondeu Harry olhando para o carro que
flutuava.
— Ah, isto não conta — respondeu Rony. — É só emprestado. É
do papai,
não fomos nós que o enfeitiçamos. Mas fazer mágica na frente
desses trouxas
com quem você mora...
— Eu já disse que não fiz... Mas vai levar muito tempo para
contar agora.
Olha, será que você pode avisar em Hogwarts? Os Dursley me trancaram e não
vão me deixar voltar e, é claro, não posso sair usando
mágica, porque o Ministério
vai achar que é a segunda mágica que faço em três dias, e
aí...
— Pare de falar coisas sem sentido — disse Rony. — Viemos
levá-lo para
casa conosco.
— Mas vocês também não podem me tirar usando mágica...
— Não precisamos — disse Rony, indicando com a cabeça o
banco
dianteiro do carro e sorrindo. — Você esqueceu quem foi que
eu trouxe comigo.
— Amarre isso nas grades —
mandou Fred, atirando a ponta de uma
corda para Harry.
— Se os Dursley acordarem, estou morto — comentou Harry
enquanto
amarrava a corda bem firme em volta da grade e Fred
acelerava o carro.
— Não se preocupe — falou Fred —, e dê distância.
Harry recuou para as sombras próximas, a Edwiges, que
parecia ter
percebido como aquilo era importante e ficou parada e
silenciosa. O carro roncou
cada vez mais alto e, de repente, com um ruído de
trituração, as grades foram
totalmente arrancadas da janela, enquanto Fred continuava a subir no ar Harry
correu à janela e viu as grades balançando a pouco mais de
um metro do chão.
Rony, ofegante, guindou-as para dentro do carro. Harry
escutava ansioso, mas
não vinha o menor ruído do quarto dos Dursley.
Depois que as grades foram guardadas no banco traseiro do carro, ao
lado de Rony, Fred deu marcha a ré até chegar o mais próximo
possível da janela
de Harry.
— Entre — convidou Rony.
— Mas todo o meu material de Hogwarts... Minha varinha...
Minha
vassoura...
— Onde está?
— Trancado no armário embaixo da escada, e não posso sair
deste
quarto...
— Não tem problema — disse Jorge do banco dianteiro do
carro. — Saia
da frente, Harry.
Fred e Jorge entraram no quarto de Harry pela janela, feito
gatos. A
pessoa tinha que tirar o chapéu para eles, pensava Harry,
quando Jorge puxou um
grampo do bolso e começou a arrombar a fechadura.
— Tem muito bruxo que acha que é uma perda de tempo conhecer
macetes de trouxas como esse — disse Fred —, mas nós achamos
que vale a
pena aprender essas habilidades, mesmo que sejam um pouco
demoradas.
A porta fez um dique e se abriu.
— Então, vamos apanhar o seu malão, e você pega o que
precisar do seu
quarto e passa para o Rony – murmurou Jorge.
— Cuidado com o último degrau, ele range — murmurou Harry para os
gêmeos que desapareceram no corredor escuro.
Harry correu pelo quarto reunindo seus pertences e
passando-os a Rony
pela janela. Então, foi ajudar Fred e Jorge a carregar o
malão para cima. Harry
ouviu o tio Válter tossir.
Finalmente, ofegantes, eles chegaram ao alto da escada e
carregaram o
malão pelo quarto de Harry até a janela aberta.
Fred pulou a janela de volta ao carro para puxar o malão com
Rony,
enquanto Harry e Jorge o empurravam pelo lado de dentro.
Pouco a pouco, o malão deslizou pela janela. Tio Válter
tossiu outra vez.
— Mais um pouquinho — arfou Fred, que estava puxando o malão
para
dentro do carro. — Mais um bom empurrão...
Harry e Jorge jogaram os ombros contra o malão e ele
deslizou da janela
para o assento traseiro do carro.
— Muito bem, vamos — cochichou Jorge.
Mas quando Harry subia no parapeito da janela ouviu um
guincho alto
atrás dele, seguido imediatamente pela voz trovejante do tio
Válter.
— ESSA CORUJA DESGRAÇADA!
— Eu esqueci a Edwiges! Harry precipitou-se de volta ao
quarto na hora
em que a luz do corredor se acendeu — agarrou a gaiola,
correu à janela e
passou-a a Rony. E estava subindo de volta na cômoda quando
o tio Válter socou
a porta destrancada e ela se escancarou.
Por uma fração de segundo, o tio Válter parou emoldurado
pelo portal, em
seguida deixou escapar um urro como o de um touro enfurecido e atirou-se
contra Harry prendendo-o pelo tornozelo.
Rony, Fred e Jorge agarraram os braços de Harry e o puxaram
com toda a
força que tinham.
— Petúnia! — berrou tio Válter. — Ele está fugindo! ELE ESTÁ
FUGINDO!
Mas os Weasley deram um puxão gigantesco e a perna de Harry
se soltou
da garra do tio Válter — e Harry já estava no carro e batia
a porta.
— Pé na tábua, Fred! — gritou Rony, e o carro disparou de
repente em
direção à lua.
Harry não conseguia acreditar — estava livre. Baixou a janela, o ar da
noite chicoteou seus cabelos, e ele virou a cabeça para contemplar os telhados
da Rua dos Alfeneiros que desapareciam ao longe. Tio Válter,
tia Petúnia e Duda
estavam todos debruçados, estupefatos, na janela de Harry.
— Vejo vocês no próximo verão! — gritou Harry.
Os Weasley soltaram gargalhadas e Harry se acomodou no
banco,
sorrindo de orelha a orelha.
— Solte a Edwiges — pediu ele a Rony. — Ela pode voar atrás
do carro.
Há séculos que não tem uma chance de esticar as asas.
Jorge passou o grampo a Rony e, um momento depois, Edwiges
voou feliz
pela janela e ficou deslizando ao lado do carro como um
fantasma.
— Então, qual é a história, Harry? — perguntou Rony
impaciente. — Que
aconteceu?
Harry contou tudo sobre Dobby, o aviso que dera a Harry e o
desastre
com o pudim de violetas. Fez-se um silêncio longo e
assombroso quando
ele terminou.
— Muito esquisito — disse Fred finalmente.
— Decididamente suspeito – concordou Jorge. — E ele nem quis
lhe dizer
quem estaria tramando tudo isso?
— Acho que ele não podia — respondeu Harry. — Eu lhe contei,
todas as
vezes que ele estava quase deixando escapar alguma coisa,
começava a bater a
cabeça na parede.
Harry viu Fred e Jorge se entreolharem.
— O quê, vocês acham que ele estava mentindo para mim? —
perguntou
Harry.
— Bom — respondeu Fred —, vamos colocar a coisa assim...
— Elfos domésticos têm poderes mágicos próprios, mas em
geral não
podem usá-los sem a permissão dos donos. Calculo que o velho
Dobby foi
mandado para impedir que você voltasse a Hogwarts. Deve ser
a idéia
que alguém faz de uma brincadeira. Você pode imaginar alguém
na escola que
tenha raiva de você?
— Claro — disseram Harry e Rony, juntos, na mesma hora.
— Draco Malfoy — explicou Harry. — Ele me odeia.
— Draco Malfoy? — perguntou Jorge, virando-se. — O filho de
Lúcio
Malfoy?
— Deve ser, não é um nome muito comum, é? — disse Harry.
— Por quê?
— Já ouvi papai falar nele. Era um grande seguidor de
Você-Sabe-Quem.
— E quando Você-Sabe-Quem desapareceu — acrescentou Fred,
esticando-se para olhar para Harry —, Lúcio Malfoy voltou dizendo que nunca
tivera intenção de fazer nada. Um monte de bosta... Papai
acha que ele fazia parte
do círculo intimo de Você-Sabe-Quem.
Harry já ouvira esses comentários sobre a família Malfoy
antes e não se
surpreendeu nem um pouco. Draco Malfoy fazia Duda Dursley
parecer um menino
bom, atencioso e sensível.
— Não sei se os Malfoy têm um elfo doméstico... — disse
Harry.
— Bom, seja quem for, os donos dele devem ter uma família de
bruxos
antiga e rica — disse Fred.
— É, mamãe sempre desejou que a gente tivesse um elfo
doméstico para
passar a roupa — comentou Jorge. — Mas só o que temos é um
vampiro velho e
incompetente no sótão e gnomos por todo o jardim. Elfos domésticos combinam
com grandes casas senhoriais, castelos e lugares do gênero;
você não toparia
com um na nossa casa...
Harry estava calado. A julgar pelo fato de que Draco Malfoy
em geral tinha
do bom e do melhor, a família devia rolar em dinheiro de
bruxo; ele podia
até imaginar Malfoy se pavoneando por uma grande casa senhorial. Mandar o
criado da família impedir Harry de voltar a Hogwarts também
parecia bem o tipo
de coisa que Malfoy faria. Ele teria sido tão burro a ponto
de levar Dobby a sério?
— Em todo o caso, fico contente que a gente tenha vindo buscá-Lo. Eu
estava ficando realmente preocupado quando você, não
respondeu minhas cartas.
Primeiro pensei que tinha sido culpa de Errol...
— Quem é Errol?
— Nossa coruja. Ele é velhíssimo. Não seria a primeira vez
que desmaia
ao fazer uma entrega. Então tentei pedir o Hermes
emprestado...
— Quem?
— A coruja que mamãe e papai compraram para Percy quando ele
foi
nomeado monitor — explicou Fred do banco da frente.
— Mas Percy não quis me emprestar. Disse que precisava dele.
— Percy anda se comportando de forma muito estranha este
verão —
disse Jorge franzindo a testa. — E tem despachado um bocado de cartas e
passado um tempão trancado no quarto... Quero dizer, tem
limite o número de
vezes que a pessoa pode querer dar brilho num distintivo de monitor.. Você está
se afastando demais para oeste, Fred — acrescentou, apontando a bússola no
painel do carro. Fred corrigiu o rumo girando o volante.
— E seu pai sabe que você está dirigindo o carro? —
perguntou Harry,
já adivinhando a resposta.
— Ah, não — disse Rony —, ele teve que trabalhar hoje à
noite. Com
sorte conseguiremos guardar o carro de volta na garagem
antes que mamãe note
que saímos com ele.
— Afinal, que é que seu pai faz no Ministério da Magia?
— Ele trabalha no departamento mais monótono de todos —
disse Rony.
— O do Controle do Mau Uso dos Artefatos dos Trouxas.
— O quê?
— Tratam do feitiço lançado em objetos feitos pelos trouxas,
sabe, no
caso de acabarem indo parar numa loja ou numa casa de
trouxas. Como no ano
passado, uma velha bruxa morreu e o seu serviço de chá foi vendido a uma loja
de antiguidades.
— Uma mulher trouxa comprou o serviço, levou para casa e
tentou servir
chá aos amigos. Foi um pesadelo, papai ficou trabalhando
depois do expediente
durante semanas.
— Que aconteceu?
— O bule de chá endoidou e espirrou chá fervendo para todo
lado, e um
homem foi parar no hospital com as pinças de açúcar presas
no nariz. Papai
quase ficou louco, só existe ele e um velho bruxo chamado
Perkins no escritório, e
os dois tiveram que usar feitiços para apagar lembranças e
outros tipos de
recursos para abafar o caso...
— É, papai é doido por tudo que os trouxas produzem; nosso
barraco
de ferramentas é cheio de coisas de trouxas. Ele desmonta um
objeto, enfeitiça e
torna a montá-lo. Se ele revistasse a nossa casa teria que
se dar ordem de prisão.
Mamãe fica danada.
— Aquela é a estrada principal — disse Jorge, espiando para
baixo pelo
pára-brisa. — Estaremos lá em dez minutos... Antes assim, já
está clareando...
Uma ligeira claridade rosada tornava-se visível na linha do
horizonte a
leste.
Fred fez o carro baixar um pouco, e Harry viu uma colcha de
retalhos feita
de campos e arvoredos.
— Moramos um pouquinho fora da cidade — disse Jorge. — Ottery St.
Catchpole...
O carro voador continuava a descer. A auréola escarlate do
sol agora
brilhava por entre as árvores.
— Pousamos! — exclamou Fred quando, com um ligeiro
solavanco, eles
tocaram o chão.
Tinham pousado ao lado de garagem desmantelada num pequeno
quintal,
e Harry olhou pela primeira vez para a casa de Rony.
Parecia ter sido no
passado um grande chiqueiro de pedra, que foram
acrescentando cômodos aqui e
ali até ela atingir os andares e era tão torta que parecia
ser sustentada por mágica
(o que, Harry lembrou a si mesmo, era provável).
Quatro ou cinco chaminés estavam encarrapitadas no alto do
teto
vermelho. Em um letreiro torto enfiado no chão, próximo à
entrada, lia-se A TOCA.
Em volta da porta de entrada encontrava-se uma variedade de
botas de borracha
e um caldeirão muito enferrujado.
Várias galinhas castanhas e gordas ciscavam pelo quintal.
— Não é muita coisa — disse Rony.
— É maravilhosa — comentou Harry feliz, pensando na Rua dos
Alfeneiros.
Eles desembarcaram do carro.
— Agora vamos subir muito quietinhos — recomendou Fred e
esperar
mamãe nos chamar para tomar o café da manhã.
Eles desembarcaram do carro.
— Então Rony, você desce correndo e diz: "Mamãe, olhe
só
quem apareceu durante a noite!" e ela vai ficar contente
de ver o Harry e ninguém
vai precisar saber que saímos voando no carro.
— Certo — concordou Rony. — Vamos Harry, eu durmo no... No
alto...
O rosto de Rony ganhou um tom verde esquisito, seus olhos se
fixaram na
casa. Os outros três se viraram.
A Sra. Weasley vinha atravessando o quintal, espantando
galinhas, e para
uma senhora baixa, gorducha, de rosto bondoso, era incrível
como estava
parecendo um tigre de dentes de sabre.
— Ah!— exclamou Fred.
— Essa não! — exclamou Jorge.
A Sra. Weasley parou diante deles, as mãos nos quadris,
olhando de uma
cara culpada para a outra. Vestia um avental florido com uma
varinha saindo pela
borda do bolso.
— Muito bem — disse ela.
— Bom-dia, mamãe — disse Jorge, no que ele audivelmente
pensou que
era uma voz lampeira e cativante.
— Vocês fazem idéia da preocupação que tive? — perguntou a
Sra.
Weasley num sussurro letal.
— Desculpe, mamãe, mas sabe, tínhamos que...
Os três filhos da Sra. Weasley eram mais altos do que ela, mas
encolheram à medida que a raiva da mãe ia desabando sobre
eles.
— As camas vazias! Nenhum bilhete! O carro desaparecido...
Podia
ter batido... Louca de preocupação... Vocês se
importaram?... Nunca em minha
vida... Esperem até seu pai voltar, nunca tivemos problemas
assim com o Gui nem
com o Carlinhos nem com o Percy...
— O Percy perfeito — resmungou Fred.
— VOCÊS PODIAM SE MIRAR NO
EXEMPLO DO PERCY! — berrou a
Sra. Weasley, metendo o dedo no peito de Fred.
— Vocês podiam ter morrido, podiam ter sido vistos, podiam
ter feito seu
pai perder o emprego...
Parecia que o sermão estava durando horas. A Sra. Weasley
ficou rouca
de tanto gritar até se virar para Harry, que recuou.
— Estou muito contente em vê-lo, Harry, querido — disse ela.
— Entre,
venha tomar café.
Deu meia-volta e entrou em casa, e Harry, depois de lançar um olhar
nervoso a Rony, que acenou com a cabeça animando-o,
acompanhou-a.
A cozinha era pequena e um tanto apertada. Havia ao centro
uma mesa
de madeira muito escovada e cadeiras, e Harry se sentou na beirada de uma,
espiando à sua volta. Nunca estivera numa casa de bruxos
antes.
O relógio na parede em frente só tinha um ponteiro e nenhum número.
Havia escritas em torno do mostrador coisas assim, Hora de
fazer chá, Hora de
dar comida ás galinhas e Você está atrasado. Havia livros
arrumados em fileiras
triplas sobre o console da lareira, livros com títulos do
gênero Enfeitice o seu
próprio queijo, O Feitiço no forno e Festas de um minuto —
um Encantamento! E,
a não ser que os ouvidos de Harry o enganassem, o velho
rádio ao lado da pia
acabara de anunciar que o próximo programa era "Hora de
Encantos, com a
popular cantora bruxa, Celestina Warbeck".
A Sra. Weasley batia pratos e panelas, preparando o café da
manhã um
pouco a esmo, lançando olhares feios aos filhos, enquanto atirava salsichas na
frigideira.
De vez em quando resmungava coisas como "não sei o que
estavam
pensando" e "eu nunca teria acreditado".
— Não estou culpando você; querido — ela tranqüilizou Harry,
servindo
oito ou nove salsichas no prato dele. — Arthur e eu
estivemos preocupados com
você, também. Ainda na outra noite estávamos falando que
iríamos buscá-lo
pessoalmente se você não escrevesse a Rony até sexta-feira. Mas francamente
— (ela agora acrescentava três ovos fritos às salsichas) —
atravessar metade do
país em um carro ilegal, vocês podiam ter sido vistos...
Ela acenou a varinha displicentemente em direção dos pratos
na pia, que
começaram a se lavar, entrechocando-se de leve ao fundo.
— Estava nublado, mamãe! — exclamou Fred.
— Você fique de boca fechada enquanto come! — ralhou a Sra.
Weasley.
— Estavam matando ele de fome, mamãe! – disse Jorge.
— E você! — disse a Sra. Weasley, mas foi com uma expressão
ligeiramente mais branda que ela começou a cortar e passar manteiga no pão
para Harry.
Naquele momento surgiu uma distração sob a forma de uma
figura
pequena, de cabelos vermelhos, que vestia uma longa
camisola, e apareceu na
cozinha, deu um gritinho e saiu correndo outra vez.
— Gina — disse Rony baixinho para Harry. — Minha irmã. Andou
falando
em você o verão inteiro.
— É, ela vai querer o seu autógrafo, Harry — disse Fred com
um sorriso,
mas viu que a mãe o olhava e baixou o rosto para o prato,
calando-se. Nada mais
foi dito até os quatro pratos ficarem limpos, o que levou um
tempo
surpreendentemente breve.
— Putz, estou cansado — bocejou Fred, pousando finalmente a
faca e o
garfo. — Acho que vou me deitar e...
— Não vai, não — retrucou a Sra. Weasley. — A culpa foi sua
se ficou a
noite toda acordado. Você vai desgnomizar o jardim para mim;
eles estão ficando
completamente rebeldes outra vez.
— Ah, mamãe...
— E vocês dois — disse ela, olhando feio para Rony e Fred. —
Você pode
ir se deitar, querido — acrescentou dirigindo-se a Harry. —
Você não pediu a eles
para voarem naquele carro infernal.
Mas Harry, que se sentia completamente acordado, disse
depressa:
— Vou ajudar o Rony. Nunca vi fazer uma desgnomização...
— É muito gentil de sua parte, querido, mas é trabalho
monótono — disse
a Sra. Weasley. — Agora vamos ver o que Lockhart tem a dizer
sobre o assunto.
Ela puxou um livro pesado de cima do console. Jorge gemeu.
— Mamãe, nós sabemos como desgnomizar um jardim.
Harry espiou a capa do livro da Sra. Weasley. Escritas na capa em
arabescos dourados havia as palavras Guia de pragas
domésticas de Gilderoy
Lockhart. Havia na capa uma grande foto de um bruxo bonitão
de cabelos louros
ondulados e olhos azuis muito vivos. Como sempre no mundo
dos bruxos, a foto
se mexia; o bruxo, que Harry supunha que fosse o tal Gilderoy Lockhart, não
parava de piscar, muito animado, para todos.
— Ah, ele é um assombro — disse a mãe. — Conhece bem as
pragas
domésticas.
É um livro maravilhoso...
— Mamãe tem um xodó por ele — disse Fred num sussurro muito
audível.
— Não seja ridículo Fred — retorquiu a Sra. Weasley, o rosto
muito
corado. — Está bem, se vocês acham que sabem mais do que
Lockhart, podem ir
fazer o trabalho, mas tenho pena de vocês se tiver sobrado
um único gnomo
naquele jardim quando eu sair para inspecioná-lo.
Aos bocejos e resmungos, os Weasley saíram se arrastando, com Harry
em sua cola. O jardim era grande e, aos olhos de Harry, exatamente
como um
jardim devia ser. Os Dursley não teriam gostado — havia
muito mato e a grama
precisava ser aparada —, mas havia árvores nodosas a toda
volta dos muros,
plantas que Harry nunca vira saindo de cada canteiro e um grande tanque de
águas verdosas cheio de sapos.
— Os trouxas também
têm gnomos de jardim, sabe — Harry contou a
Rony quando cruzavam o gramado.
— Sei, já vi aquelas coisas que eles acham que são gnomos —
disse
Rony, com o corpo dobrado e a cabeça enfiada num pé de peônias —, como
papais noéis baixinhos e gordinhos segurando varas de
pescar...
Ouviram um ruído de alguém se debatendo violentamente, o pé
de peônia
estremeceu e Rony se levantou.
— Isto é um gnomo — disse serio.
— Tire as mãos de cima de mim!Tire as mãos de cima de mim!
Guinchou
o gnomo.
Decerto não parecia nada com um Papai Noel. Era pequeno, a
pele
parecia um couro, a cabeçorra cheia de calombos e careca,
igualzinha a uma
batata. Rony segurou-o à distância enquanto o gnomo o
chutava com os pezinhos
calosos; o garoto o agarrou pelos tornozelos e o virou de
cabeça para baixo.
— Isto é o que a gente tem que fazer — explicou. E ergueu o
gnomo
acima da cabeça ("Tire as mãos de mim!") e começou
rodá-lo em grandes círculos
como se fosse laçar um boi. Ao ver a cara de espanto de
Harry, Rony
acrescentou: — Isto não machuca, você só precisa deixá-los
bem tontos para não
poderem encontrar o caminho de volta para as tocas de
gnomos.
Ele soltou os tornozelos do gnomo: que voou uns seis metros
para o alto e
caiu com um baque surdo no campo do outro lado da sebe.
— Lamentável — exclamou Fred. — Aposto que posso atirar o
meu bem
além daquele toco de árvore.
Harry aprendeu depressa a não sentir muita pena dos gnomos.
Resolveu
simplesmente deixar cair por cima da sebe o primeiro que pegou, mas o gnomo,
pressentindo fraqueza, enterrou os dentes afiados como
navalhas no seu dedo, e
Harry teve muito trabalho para sacudi-lo longe, até que...
— Uau, Harry, esse deve ter caído a uns quinze metros...
O ar não tardou a ficar coalhado de gnomos voadores.
— Está vendo, eles não são muito inteligentes — disse Jorge,
agarrando
cinco ou seis gnomos de uma vez. — Na hora que descobrem que
está havendo
uma desgnomização, aparecem correndo para dar uma espiada. Era de se
esperar que já tivessem aprendido a ficar quietos.
Logo os gnomos atirados no campo começaram a se afastar em
uma linha
descontínua, os ombrinhos curvados.
— Eles vão voltar — disse Rony enquanto observavam os gnomos
desaparecerem na sebe do outro lado do campo. — Eles adotam isso aqui...
Papai é muito mole com eles; acha que são engraçados...
Naquele instante, a porta de entrada bateu.
— Ele voltou! — disse Jorge. — Papai está em casa!
Os garotos atravessaram correndo o jardim e entraram em casa.
O Sr. Weasley estava largado numa cadeira da cozinha, sem
óculos e de
olhos fechados. Era um
homem magro, começando a ficar
careca, mas o pouco
cabelo que tinha era ruivo como o dos filhos. Usava vestes
verdes e longas, que
estavam empoeiradas e amarrotadas da viagem.
— Que noite! — murmurou, tateando à procura do bule de chá
enquanto
todos se sentaram à sua volta. — Nove batidas.
— Nove! E o velho Mundungus Fletcher ainda tentou me lançar
um feitiço
quando eu estava de costas...
O Sr. Weasley tomou um longo gole de chá e suspirou.
— Encontrou alguma coisa, papai? — perguntou Fred ansioso.
— Só encontrei umas chaves para portas que encolhem e uma chaleira
que morde — bocejou o Sr. Weasley. — Houve as ocorrências
feias, mas não
foram no meu departamento. Mortlake foi levado para interrogatório sobre umas
doninhas muito esquisitas, mas isto foi com a Comissão de
Feitiços
Experimentais, graças a Deus...
— Mas por que alguém ia se dar o trabalho de fazer chaves
que
encolhem? — perguntou Jorge.
— Só para aborrecer os trouxas — suspirou o Sr. Weasley. —
Vendem a
eles uma chave que encolhe até desaparecer, de modo que
nunca conseguem
encontrá-la quando precisam... É claro que é muito difícil processar alguém
porque nenhum trouxa vai admitir que a chave dele não pára
de encolher, insistem
que vivem a perdê-las.
Deus os abençoe, eles vão a
extremos para fingir que
magia não existe, mesmo que esteja no nariz deles... Mas as
coisas que o nosso
pessoal anda enfeitiçando, vocês não iriam acreditar...
— COMO CARROS, POR EXEMPLO?
A Sra. Weasley aparecera, empunhando um longo atiçador como
uma
espada. Os olhos do Sr. Weasley se arregalaram.
Ele olhou com cara de culpa para a mulher.
— Carros, Molly, querida?
— É Arthur, carros — disse a Sra. Weasley, os olhos
faiscando. —
Imagine só um bruxo comprar um carro velho e enferrujado e
dizer à mulher que
só quer desmontá-lo para ver como funciona, quando na
realidade o enfeitiçou
para fazê-lo voar.
O Sr. Weasley piscou os olhos.
— Bom, querida, acho que você vai descobrir que ele estava agindo
dentro da lei quando fez isso, mesmo que... Ah... Tivesse agido melhor se, hum,
se tivesse contado a verdade à mulher... Há um furo na lei, você vai descobrir...
Desde que ele não tivesse intenção de voar no carro, o fato
de que o carro poderá
voar não...
— Arthur Weasley, você providenciou para que houvesse um
furo nessa
lei quando a escreveu! — gritou a Sra. Weasley. — Só para
você poder continuar
a se distrair com aquela lixaria dos trouxas no seu barraco!
E para sua informação,
Harry chegou hoje de manhã naquele carro que você não tinha
intenção de fazer
voar!
— Harry? — exclamou o Sr. Weasley sem entender — Que Harry?
Ele olhou à volta, viu Harry e deu um salto.
— Deus do céu, é Harry Potter? Muito prazer em conhecê-lo.
Rony tem
falado tanto em...
— Os seus filhos foram naquele carro até a casa de Harry e
voltaram de lá
ontem á noite!— gritou a Sra. Weasley. — Que é que você me
diz disso, hein?
— Vocês fizeram mesmo isso? — perguntou o Sr. Weasley,
ansioso. — E
o carro voou bem? Eu... Eu quero dizer — gaguejou, enquanto
voavam faíscas
dos olhos da Sra. Weasley — que... Isso foi muito errado,
meninos... Muito errado
mesmo...
— Vamos deixar eles discutirem — Rony sussurrou para Harry
quando a
Sra. Weasley inchou como um sapo-boi. — Vamos, vou-lhe
mostrar o meu quarto.
Os dois saíram discretamente da cozinha e seguiram por um
corredor
estreito até uma escada irregular, que subia em ziguezague
pela casa. No terceiro
patamar, havia uma porta entreaberta. Harry vislumbrou dois grandes olhos
castanhos e vivos que o espiavam antes da porta fechar com
um clique.
— Gina — explicou Rony. — Você não sabe como é estranho ela
estar tão
tímida.
Normalmente ela nunca pára de falar...
Eles subiram mais dois lances e chegaram a uma porta com a
tinta
descascada e uma pequena placa onde se lia "Quarto do
Ronald".
Harry entrou, a cabeça quase tocando no teto inclinado, e
piscou os olhos.
Era como entrar num forno. Quase tudo no quarto de Rony era
de um tom
violentamente laranja: a colcha da cama, as paredes e até o
teto. Então Harry
percebeu que Rony tinha coberto praticamente cada centímetro
do papel de
parede gasto com pôsteres dos mesmos sete bruxos e bruxas,
todos usando
vestes laranja vivo, segurando vassouras e acenando com
animação.
— O seu time de Quadribol? — perguntou Harry.
— O Chudley Cannons — disse Rony, apontando para a colcha laranja,
que exibia um brasão com dois enormes O pretos e uma bala de
canhão
em movimento. — Nono lugar na divisão.
Os livros escolares de feitiçaria que pertenciam a Rony
estavam
empilhados de qualquer jeito num canto, junto com um monte
de histórias em
quadrinhos que pareciam conter a mesma tira, As aventuras de
Martin Miggs, o
trouxa pirado. A varinha de condão de Rony estava em cima de
um aquário cheio
de ovas de rã, no peitoril da janela, ao lado do seu rato cinzento e gordo, o
Perebas, que tirava um cochilo numa nesga de sol.
Harry pulou por cima de um baralho de cartas auto embaralhantes que
estava no chão e espiou pela janelinha. No campo, lá
embaixo, ele viu uma turma
de gnomos que voltavam sorrateiros, um a um, pela cerca dos Weasley. Depois
virou-se para olhar Rony, que o observava quase nervoso,
como se esperasse
ouvir sua opinião.
— É meio pequeno — disse Rony depressa. — Nada como aquele
quarto
que você tinha na casa dos trouxas. E estou bem debaixo do
vampiro no sótão;
sempre batendo nos canos e gemendo...
Mas Harry, com um grande sorriso, disse:
— Esta é a melhor casa que já visitei.
As orelhas de Rony ficaram vermelhas.
CAPÍTULO QUATRO
Na Floreios e Borrões
A vida na Toca era a
mais diferente possível da vida na Rua
dos Alfeneiros. Os Dursley gostavam de tudo limpo e arrumado; a casa dos
Weasley era cheia de coisas estranhas e inesperadas. Harry
teve um choque na
primeira vez que se mirou no espelho sobre o console da
lareira da cozinha, pois o
espelho gritou:
"Ponha a camisa para dentro, seu desleixado!" O
vampiro no sótão uivava
e derrubava canos, sempre que sentia que a casa estava
ficando demasiado
quieta, e as pequenas explosões que vinham do quarto de Fred
e Jorge eram
consideradas perfeitamente normais.
Porém, o que Harry achou mais fora do comum na vida em casa
de Rony
não foi o espelho falante nem o vampiro baterista: mas o
fato de que todos
pareciam gostar dele.
A Sra. Weasley se preocupava com o estado das meias dele e tentava
forçá-lo a repetir a comida três vezes por refeição. O Sr. Weasley gostava que
Harry se sentasse ao lado dele, na mesa do jantar, para
poder bombardeá-lo com
perguntas sobre a vida com os trouxas, pedindo-lhe para
explicar como
funcionavam coisas como as tomadas e o correio postal.
— Fascinante! — exclamou, quando Harry lhe contou como se
usava o
telefone. — Engenhoso, verdade, quantas maneiras os trouxas
encontraram de
viver sem o auxílio da magia.
Harry recebeu notícias de Hogwarts, numa bela manhã, cerca
de uma
semana depois de chegar à Toca. Ele e Rony desceram para
tomar café e
encontraram o Sr. e a Sra. Weasley e Gina já sentados à mesa
da cozinha. No
instante em que viu Harry, Gina sem querer derrubou a tigela
de mingau no chão
fazendo um estardalhaço. A garota parecia muito propensa a
derrubar coisas
sempre que Harry entrava. Ela mergulhou debaixo da mesa para
apanhar a tigela
e reapareceu com o rosto rubro como um sol poente.
Harry fingindo não notar, sentou-se e aceitou a torrada que a Sra.
Weasley lhe oferecia.
— Cartas da escola — disse o Sr. Weasley, passando a Harry e Rony
envelopes idênticos de pergaminho amarelado, endereçados com
tinta verde. -Dumbledore já sabe que você está aqui, Harry, ele não perde um
detalhe, aquele
homem. Vocês dois também receberam — acrescentou ele, quando
Fred e Jorge
entraram descontraídos, ainda de pijamas.
Durante alguns minutos fez-se silêncio enquanto todos liam
as cartas. A
de Harry mandava-o tomar o Expresso de Hogwarts como sempre
na estação de
King’s Cross, no dia 1º de setembro. Trazia também uma lista
dos novos livros
que ia precisar para o próximo ano letivo.
MATERIAL PARA OS ALUNOS DA SEGUNDA SÉRIE:
O Livro Padrão de feitiços, 2ª série de
Miranda Goshawk.
Como dominar um espírito agourento de
Gilderoy Lockhart.
Como se divertir com vampiros de
Gilderoy Lockhart.
Férias com bruxas malvadas de Gilderoy
Lockhart.
Viagens com trasgos de Gilderoy Lockhart.
Excursões com vampiros de Gilderoy
Lockhart.
Passeios com lobisomens de Gilderoy
Lockhart.
Um ano com o Ieti de Gilderoy Lockhart.
Fred, que terminara de ler a lista, deu uma espiada na de
Harry.
— Mandaram você comprar todos os livros de Lockhart também!
—
admirou-se. — O novo professor de Defesa Contra as Artes das Trevas deve ser
fã dele, aposto que é uma bruxa.
Ao dizer isto, o olhar de Fred cruzou com o de sua mãe e ele
rapidamente
voltou a atenção para a sua geléia.
— Esse material não vai sair barato — comentou Jorge,
lançando um
olhar rápido aos pais. — Os livros de Lockhart são bem
carinhos...
— Daremos um jeito — disse a Sra. Weasley, embora tivesse a
expressão
preocupada. — Espero poder comprar a maioria do material de
Gina de segunda
mão.
— Ah, você vai entrar para Hogwarts este ano? — perguntou
Harry
a Gina.
Ela confirmou com a cabeça, corando até a raiz dos cabelos
flamejantes e
enfiou o cotovelo na manteigueira. Felizmente ninguém viu
exceto Harry
porque, naquele momento, o irmão mais velho de Rony, Percy,
entrou na cozinha.
Já estava vestido, o distintivo de monitor em Hogwarts preso
no suéter sem
mangas.
— Dia — disse Percy animado. — Lindo dia.
Sentou-se na única cadeira desocupada, mas quase
imediatamente
levantou-se de um salto, erguendo do assento um espanador de
penas cinzentas
que parecia estar na muda — pelo menos foi isso que Harry
pensou que fosse, até
ver que a coisa respirava.
— Erroll — exclamou Rony, recolhendo a coruja inerte da mão
de Percy
e extraindo uma carta que ela trazia presa sob a asa. — Finalmente chegou a
resposta de Hermione. Escrevi a ela avisando que íamos
tentar salvar você dos
Dursley.
Ele levou Errol até um poleiro na porta dos fundos e tentou
fazê-lo
encarrapitar-se, mas a coruja tornou a desmontar, por isso
Rony a deitou na tábua
de escorrer, resmungando "Patético". Em seguida
ele abriu a carta de Mione e leu-a em voz alta.
“Queridos Rony e Harry, se estiver aí.
Espero que tudo tenha corrido bem, que Harry esteja bem
e que você não tenha feito nada ilegal para tirá-lo de lá,
Rony,
porque isso criará problemas para o Harry também. Tenho
estado
realmente preocupada e, se Harry estiver bem, por favor, mande
me dizer logo, mas talvez seja melhor usar outra coruja, porque
acho que mais uma entrega talvez mate essa.
Estou muito ocupada, estudando, é claro...”
— Como é que pode! — exclamou Rony horrorizado. — Estamos de
férias!
“E vamos a Londres na próxima quarta-feira comprar os
livros novos. Porque não nos encontramos no Beco Diagonal?
Mande notícias do que está acontecendo, assim que
puder. Afetuosamente, Mione”.
— Bom, isso se encaixa perfeitamente. Podemos ir comprar
todo o
material de vocês, também — disse a Sra. Weasley, começando
a tirar a mesa. —
Que é que vocês estão planejando fazer hoje?
Harry, Rony, Fred e Jorge estavam pensando em subir o morro
até um
pequeno prado que pertencia aos Weasley. Era cercado de
árvores que
bloqueavam a visão da cidadezinha embaixo, o que significava
que podiam
praticar Quadribol lá, desde que não voassem muito alto. Não
podiam usar bolas
de Quadribol de verdade, pois seria difícil explicar se
escapulissem e
sobrevoassem a cidade; em vez disso, atiravam maçãs uns para
os outros.
Revezaram-se para montar a Nimbus 2000 de Harry, que era,
sem nenhum favor,
a melhor vassoura; a velha Shooting Star de Rony muitas
vezes perdia na corrida
para as borboletas que apareciam.
Cinco minutos depois os garotos estavam subindo o morro, as
vassouras
nos ombros.
Tinham perguntado a Percy se queria acompanhá-los, mas ele
respondera
que estava ocupado. Harry até ali só tinha visto Percy às
refeições; ele passava o
resto do tempo trancado no quarto.
— Gostaria de saber o que ele está aprontando — disse Fred,
franzindo a
testa. — Está tão mudado. O resultado das provas dele chegou um dia antes de
você; doze N.O.M.s e ele nem cantou vitória.
— Níveis Ordinários em Magia — explicou Jorge, vendo o olhar
intrigado
de Harry. — Gui recebeu doze também. Se não nos cuidarmos
vamos ter outro
monitor-chefe na família. Acho que não iríamos suportar a
vergonha.
Gui era o filho mais velho dos Weasley. Ele e o irmão logo
abaixo,
Carlinhos, já tinham terminado Hogwarts. Harry nunca vira
nenhum dos dois, mas
sabia que Carlinhos estava na Romênia estudando dragões e
Gui, no Egito,
trabalhando no banco dos bruxos, o Gringotes.
— Não sei como mamãe e papai vão poder comprar todo o nosso
material
escolar este ano — disse Jorge depois de algum tempo. —
Cinco conjuntos de
livros do Lockhart! E Gina precisa de vestes, uma varinha e
todo o resto...
Harry não disse nada. Sentiu-se um pouco constrangido. Guardado no
cofre subterrâneo do Banco de Gringotes, em Londres, havia
uma pequena
fortuna que seus pais lhe haviam deixado. Naturalmente, era somente no mundo
dos bruxos que ele tinha dinheiro; não se podia usar
galeões, sicles e nuques em
lojas de trouxas. Ele nunca mencionara aos Dursley sua conta
no Banco de
Gringotes, pois achava que o horror que eles tinham à magia
não se estenderia a
um montão de ouro.
A Sra. Weasley acordou-os bem cedo na quarta-feira seguinte.
Depois de
comerem rapidamente uma dúzia de sanduíches de bacon cada
um, eles vestiram
os casacos e a Sra. Weasley apanhou um vaso de flor no console da cozinha e
espiou dentro dele.
— Estamos com o estoque baixo, Arthur — suspirou. — Teremos
que
comprar mais hoje...
— Ah, muito bem, hóspedes primeiro! Pode começar, Harry
querido!
E ela lhe ofereceu o vaso de flor.
Harry olhou para os Weasley, que o observavam.
— Q-que é que eu tenho que fazer? — gaguejou.
— Ele nunca viajou com Pó de Flu — disse Rony de repente. —
Desculpe
Harry, eu me esqueci.
— Nunca? — admirou-se o Sr. Weasley. — Mas como foi que você
chegou ao Beco Diagonal para comprar seu material escolar no
ano passado?
— Fui de metrô...
— Verdade? — exclamou o Sr. Weasley animado. — Havia
escapadas
rolantes? Como é que...
— Agora não, Arthur — disse a Sra. Weasley. — O Pó de Flu é
muito mais
rápido, querido, mas meu Deus, se você nunca o usou antes...
— Ele vai conseguir, mamãe — disse Fred. — Harry observe a
gente primeiro.
Fred apanhou uma pitada de pó brilhante no vaso de flor, foi
até a lareira e
atirou o pó no fogo.
Com um rugido, as chamas ficaram verde-esmeralda e mais
altas do que
Fred, que entrou nelas e gritou "Beco Diagonal!” e
desapareceu.
— Você precisa falar bem claro, querido — disse a Sra.
Weasley a Harry
quando Jorge mergulhou a mão no vaso. — E se certifique se está saindo na
grade certa...
— Na o quê certa? — perguntou Harry nervoso enquanto as
chamas
rugiam e arrebatavam Jorge de vista.
— Bem, há um número enorme de lareiras de bruxos para você
escolher,
sabe, mas se você falar com clareza...
— Ele vai acertar, Molly, não se preocupe — disse o Sr.
Weasley, servindo-se de Pó de Flu, também.
— Mas, querido, se ele se perder, como é que iríamos
explicar à tia e ao
tio dele?
— Eles não se importariam — tranqüilizou-a Harry. — Duda ia
achar que
teria sido uma piada genial se eu me perdesse dentro de uma
lareira, não se
preocupe.
— Bem... Está bem... Você vai depois de Arthur — disse a
Sra. Weasley. -Agora, quando entrar no fogo, diga aonde vai...
— E mantenha os cotovelos colados ao corpo — aconselhou.
— E os olhos fechados — recomendou a Sra. Weasley. — A
fuligem...
— Não se mexa — disse Rony. — Ou pode acabar caindo na lareira
errada... Mas cuidado para não entrar em pânico e sair antes
da hora. Espere até
ver Fred e Jorge. Harry, fazendo força para guardar tudo
isso na cabeça, apanhou
uma pitada de Pó de Flu e avançou até a beira do fogo.
Inspirou profundamente,
lançou o pó nas chamas e entrou; o fogo lhe lembrou uma
brisa morna; ele abriu a
boca e imediatamente engoliu um monte de cinzas quentes.
— B-be-co
Diagonal — tossiu.
A sensação de estar sendo sugado por um enorme ralo. Ele
parecia estar
girando muito rápido.
O rugido em seus ouvidos era ensurdecedor.. E tentou manter
os olhos
abertos, mas o rodopio das chamas verdes lhe dera enjôo...
Uma coisa dura bateu
no seu cotovelo e ele o prendeu com firmeza junto ao corpo,
sempre girando...
Agora a sensação era de mãos geladas esbofeteando seu rosto... Apertando os
olhos por trás dos óculos ele viu uma sucessão de lareiras
indistintas e relances
de aposentos além...
Os sanduíches de bacon reviravam em sua barriga... Ele tornou a fechar
os olhos desejando que aquilo parasse e então... Caiu de
cara no chão, em cima
de uma pedra fria e sentiu a ponta dos óculos se partir.
Tonto e machucado, coberto de fuligem, ele se levantou
desajeitado,
segurando os óculos partidos na frente dos olhos. Estava
totalmente sozinho, mas
onde estava ele não fazia idéia.
Só sabia dizer que estava de pé numa lareira de pedra, em um
lugar que
parecia ser uma loja de bruxo grande e mal-iluminada — mas
nada que havia ali
tinha a menor probabilidade de aparecer numa lista de
material escolar
de Hogwarts.
Um mostruário próximo continha uma mão murcha em cima de uma
almofada, um baralho manchado de sangue e um olho de vidro
arregalado.
Máscaras diabólicas o espiavam das paredes, uma variedade de
ossos humanos
jazia sobre o balcão e instrumentos pontiagudos e
enferrujados pendiam do teto, E
o que era pior, a rua estreita e escura que Harry via pela
vitrine empoeirada da loja
decididamente não era Beco Diagonal.
Quanto mais cedo saísse dali melhor. Com o nariz ainda
doendo por
causa da batida na lareira, Harry se encaminhou depressa e
silenciosamente para
a porta, mas antes que cobrisse metade da distância, duas
pessoas apareceram
do outro lado da vitrine — e uma delas era a última pessoa que Harry queria
encontrar estando perdido, coberto de fuligem, com os óculos
partidos: Draco
Malfoy.
Harry olhou depressa a toda volta e viu um grande armário preto à
esquerda; correu para ele e se fechou dentro, deixando
apenas uma frestinha na
porta para espiar. Segundos depois, uma sineta tocou e
Malfoy entrou na loja.
O homem que entrou atrás dele só podia ser o pai. Tinha a
mesma cara
fina e pontuda e olhos idênticos, frios e cinzentos.
O Sr. Malfoy andou pela loja examinando descansadamente os
objetos
expostos e tocou uma campainha em cima do balcão antes de se
virar para o filho
e dizer:
— Não toque em nada, Draco.
Malfoy, que esticara a mão para o olho de vidro, retrucou:
— Pensei que você ia me comprar um presente.
— Eu disse que ia lhe comprar uma vassoura de corrida —
disse o pai
tamborilando no balcão.
— De que me serve uma vassoura se não faço parte do time da
casa? —
respondeu Malfoy, com a cara amarrada. — Harry Potter ganhou
uma Nimbus
2000 no ano passado. Permissão especial de Dumbledore para ele poder jogar
pela Grifinória. Ele nem é tão bom assim, só que é famoso...
Famoso por ter uma
cicatriz idiota na testa...
Malfoy se abaixou para examinar uma prateleira cheia de
crânios.
— Todo mundo acha que ele é tão sabido, o maravilhoso Potter
com sua
cicatriz e sua vassoura...
— Você já me contou isso no mínimo dez vezes — disse o Sr.
Malfoy,
com um olhar de censura para o filho. — E gostaria de
lembrar-lhe que não
é, prudente, demonstrar que não gosta de Harry Potter, não
quando a maioria do
nosso povo acha que ele é o herói que fez o Lord das Trevas
desaparecer...
Ah, Sr. Borgin.
Um homem curvado aparecera atrás do balcão, alisando os cabelos
untados de óleo para afastá-los do rosto.
— Sr. Malfoy, que prazer revê-lo — disse o Sr. Borgin
untuoso como os
seus cabelos. — Encantado, e o jovem Malfoy, também, encantado. Em que
posso servi-los? Preciso lhes mostrar, chegou hoje, e a um
preço muito módico...
— Não vou comprar nada hoje, Sr. Borgin, vou vender — disse
o Sr.
Malfoy.
— Vender? — O sorriso se embaçou levemente no rosto do
Borgin.
— O senhor ouviu falar, é claro, que o Ministério está
fazendo mais blitz
— disse o Sr. Malfoy, puxando um rolo de pergaminho do bolso
interno do casaco
e desenrolando-o para Sr. Borgin ler. — Tenho em casa uns, ah, objetos que
podem me causar embaraços, se o Ministério aparecesse...
O Sr. Borgin encaixou um pincenê na ponta do nariz e
percorreu a lista.
— O Ministério certamente não ousaria incomodá-lo, não é,
meu senhor?
O Sr. Malfoy crispou os lábios.
— Até agora não me visitaram. O nome Malfoy ainda impõe um certo
respeito, mas o Ministério está ficando cada vez mais
intrometido. Há boatos de
uma nova lei de proteção aos trouxas: com certeza aquele bobalhão pulguento,
apreciador de trouxas, Arthur Weasley está por trás disso...
Harry sentiu uma onda escaldante de raiva.
— ... E como vê, alguns desses venenos poderiam fazer
parecer...
— Compreendo, meu senhor, naturalmente — disse o Sr. Borgin.
—
Deixe-me ver...
— Pode me dar aquilo? — interrompeu Draco, apontando para a
mão
murcha sobre a almofada.
— Ah, a Mão da Glória! — disse o Sr. Borgin, abandonando a lista de
Malfoy e correndo para perto de Draco. — Ponha-lhe uma vela e ela dá luz
apenas a quem a segura! A melhor amiga dos ladrões e
saqueadores! O seu filho
tem ótimo gosto, meu senhor.
— Espero que o meu filho venha a ser mais do que um ladrão
ou um
saqueador, Borgin — disse o Sr. Malfoy com frieza, ao que o
Sr. Borgin respondeu
depressa:
— Sem ofensa, meu senhor, não tive intenção de ofender...
— Mas, se as notas dele não melhorarem — disse o Sr. Malfoy
com maior
frieza ainda —, pode ser que ele realmente só tenha talento
para isto.
— Não é minha culpa — retrucou Draco. — Todos os professores
têm
alunos preferidos, aquela Hermione Granger...
— Pensei que você sentiria vergonha se uma menina que nem
pertence a
família de bruxos passasse a sua frente em todos os exames — comentou com
rispidez o Sr. Malfoy.
— Ha! — exclamou Harry baixinho, satisfeito de ver Draco com
cara de
quem está ao mesmo tempo envergonhado e aborrecido.
— É a mesma coisa em toda parte — disse o Sr. Borgin, com
sua voz
untuosa. — Ter sangue de bruxo conta cada vez menos em toda
parte...
— Não para mim — respondeu o Sr. Malfoy, com as narinas
tremendo.
— Não, meu senhor, nem para mim — disse o Sr. Borgin, fazendo uma
grande reverencia.
— Neste caso, talvez possamos voltar à minha lista — disse o
Sr.
Malfoy rispidamente. — Estou com um pouco de pressa, Borgin, tenho negócios
importantes a tratar hoje em outro lugar.
Os dois começaram a barganhar. Harry observou nervoso que
Draco se
aproximava cada vez mais do lugar em que ele estava
escondido, examinando os
objetos à venda. Draco parou para examinar um grande rolo de
corda de enforcar
e para ler, rindo, o cartão colocado em um magnífico colar
de opalas.
Cuidado:
Não toque. Amaldiçoado.
— Tirou a vida de dezenove donos trouxas até hoje.
Draco se virou e notou o armário bem em frente.
Adiantou-se... Esticou a mão para o puxador e...
— Fechado — disse o Sr. Malfoy ao balcão. — Vamos, Draco! Harry
enxugou a testa na manga ao ver Draco se afastar — Bom dia
para o senhor, Sr.
Borgin. Aguardo-o amanhã em casa para apanhar a mercadoria.
No instante em que a porta se fechou, o Sr. Borgin abandonou
seus
modos untuosos.
— Bom dia para o senhor, Senhor Malfoy, e, se as histórias
que correm
forem verdadeiras, o senhor não me vendeu metade do que tem
escondido em
sua casa... E, continuando a resmungar ameaçador, o Sr.
Borgin desapareceu no
quarto dos fundos.
Harry esperou um pouco, caso ele voltasse, e, em seguida, o
mais
silenciosamente que pôde, saiu do armário, passou pelos
mostruários de vidro e
pela porta afora.
Harry olhou para os lados, segurando os óculos partidos. Saíra em uma
ruela sombria que parecia totalmente ocupada por lojas que se dedicavam às
Artes das Trevas. A que ele acabara de deixar, a Borgin
& Burkes, parecia ser a
maior, mas em frente havia uma grande coleção de cabeças
jívaras na vitrine, e
duas portas abaixo, uma enorme gaiola pululava com gigantescas aranhas
negras. Dois bruxos mal vestidos o observavam da sombra de
um portal,
cochichando entre si. Apreensivo, Harry saiu caminhando,
tentando segurar os
óculos no lugar e esperando, sem muita esperança, conseguir
encontrar uma
saída daquele lugar.
Uma velha placa de madeira, pendurada acima de uma loja que
vendia
velas envenenadas, informava que ele se encontrava na
Travessa do Tranco. Isto
não adiantou muito, pois Harry nunca ouvira falar naquele
lugar. Imaginou que
talvez não tivesse falado com bastante clareza ao entrar na
lareira dos Weasley
porque tinha a boca cheia de cinzas. Pensou no que fazer,
tentando ficar calmo.
— Não está perdido, está querido? — disse uma voz ao seu
ouvido,
assustando-o.
Uma bruxa idosa estava ao lado dele, segurando uma bandeja
com
objetos que se pareciam horrivelmente com unhas humanas. Ela
riu dele
mostrando dentes cobertos de limo. Harry recuou.
— Estou bem, obrigado — disse. — Só estou...
— HARRY! O que você está fazendo aqui?
O coração de Harry deu um salto. O da bruxa também: as unhas
cascatearam por cima dos seus pés e ela começou a xingar ao
mesmo tempo que
a forma maciça de Hagrid, o guarda-caças de Hogwatts veio se
aproximando em
grandes passadas, seus olhinhos de besouros negros faiscando
por cima da
barba arrepiada.
— Hagrid! — exclamou Harry revelando alivio na voz rouca. Eu
me perdi...
Pó de Flu...
Hagrid agarrou Harry pela nuca e afastou-o da bruxa, derrubando a
bandeja que ela levava, O guincho que ela soltou
acompanhou-os durante todo o
trajeto pelas ruelas tortuosas até tornarem a ver a luz do
sol. Harry divisou a
distancia um edifício de mármore muito branco que já
conhecia: o Banco
de Gringotes.
Hagrid o levara direto ao Beco Diagonal.
— Você está horrível! — exclamou Hagrid, espanando a fuligem
que
cobria Harry com tanta força que quase o derrubou numa
barrica de bosta de
dragão à porta da farmácia. — Se esquivando pela Travessa do
Tranco, não sei,
não, um lugar suspeito, Harry, não quero que ninguém o veja
lá...
— Isso eu percebi — disse Harry, abaixando-se quando Hagrid
fez
menção de espaná-lo outra vez. — Eu lhe falei, eu me perdi,
que é que você
estava fazendo lá?
— Eu estava procurando repelente para lesmas carnívoras;
rosnou
Hagrid. — Elas estão acabando com os repolhos da escola. Você não está
sozinho?
— Estou na casa dos Weasley, mas nos separamos – explicou
Harry. —
Tenho que encontrá-los...
Os dois começaram a descer a rua juntos.
— Por que é que você nunca respondeu às cartas?— perguntou
Hagrid a
Harry enquanto caminhavam (o garoto tinha que dar três
passos para cada
passada das enormes botas de Hagrid).
Harry explicou tudo sobre Dobby e os Dursley.
— Trouxas nojentos — rosnou Hagrid. — Se eu tivesse
sabido...
— Harry! Harry! Aqui!
Harry ergueu os olhos e viu Hermione Granger parada no alto
das
escadas brancas de Gringotes. A garota desceu correndo ao encontro deles, os
cabelos castanhos e fartos esvoaçando para trás.
— Que aconteceu com os seus óculos? Alô, Hagrid... Ah, que maravilha
rever vocês...
— Vai entrar no Gringotes, Harry?
— Assim que eu encontrar os Weasley — respondeu Harry.
— Você não vai ter que esperar muito — disse Hagrid com
sorriso.
Harry e Hermione se viraram: correndo pela Rua cheia de
gente vinham
Rony, Fred, Jorge, Percy e o Sr. Weasley.
— Harry — ofegou o Sr. Weasley. — Tivemos esperança de que
você só
tivesse ultrapassado uma grade de lareira... — Ele enxugou a
careca reluzente. —
Molly está alucinada... Aí vem ela.
— Onde foi que você saiu? — perguntou Rony.
— Na Travessa do Tranco — informou Hagrid de cara feia.
— Que ótimo!— exclamaram Fred e Jorge juntos.
— Nunca nos deixaram entrar lá — comentou Rony invejoso.
— Ainda bem — rosnou Hagrid.
A Sra. Weasley aproximava-se correndo, a bolsa balançando
loucamente
em uma das mãos, Gina agarrada à outra.
— Ah, Harry, ah, meu querido, você podia ter ido parar em
qualquer
lugar...
Tomando fôlego ela tirou uma grande escova de roupas da
bolsa e
começou a escovar a fuligem que Hagrid não conseguira
espanar. O Sr.
Weasley apanhou os óculos de Harry, deu-lhes uma batida com
a varinha e os
devolveu, como se fossem novos.
— Bom, tenho que ir andando — disse Hagrid, cuja mão era
apertada pela
Sra. Weasley ("Travessa do Tranco! Se você não o
tivesse encontrado, Hagrid!"). -Vejo vocês em Hogwarts! — E o guarda-caças
se afastou a passos largos, a
cabeça e os ombros mais altos do que os de todo mundo na rua
cheia.
— Adivinhem quem eu encontrei na Borgin & Burkes? —
perguntou Harry
a Rony e a Hermione enquanto subiam as escadas do Gringotes.
— Malfoy e o pai
dele.
— Lúcio Malfoy comprou alguma coisa? — perguntou o Sr.
Weasley sério
logo atrás deles.
— Não, ele estava vendendo.
— Então está preocupado — comentou o Sr. Weasley com cruel
satisfação. — Ah, eu adoraria pegar Lúcio Malfoy por alguma
coisa...
— Tenha cuidado, Arthur — disse a Sra. Weasley com
severidade quando
eram cumprimentados pelo duende à porta do banco. — Aquela família
significa confusão.
Não abocanhe mais do que você pode mastigar.
— Então você não acha que sou adversário para o Lúcio
Malfoy? —
respondeu o Sr. Weasley indignado, mas foi distraído quase
no mesmo instante
pela visão dos pais de Hermione, que estavam parados
nervosos no balcão que ia
de uma ponta a outra do saguão de mármore, esperando que
Hermione os
apresentasse.
— Mas vocês são trouxas! — exclamou o Sr. Weasley encantado.
—
Precisamos tomar um drinque! Que é que têm aí? Ah, estão
trocando dinheiro de
trouxas.
— Molly, olhe! — Ele apontou excitado para as notas de dez
libras na mão
do Sr. Granger.
— Te encontro lá no fundo — disse Rony a Hermione quando os
Weasley
e Harry foram conduzidos aos cofres subterrâneos por outro
duende de Gringotes.
Chegava-se aos cofres a bordo de vagonetes pilotados por
duendes, que
os manobravam em alta velocidade por trilhos de bitola
estreita através dos túneis
subterrâneos do banco.
Harry curtiu a viagem vertiginosa até o cofre dos Weasley,
mas se sentiu
muito mal, muito pior do que se sentira na Travessa do
Tranco, quando eles o
abriram. Havia uma pequena pilha de sicles de prata lá
dentro e apenas um
galeão de ouro. A Sra. Weasley tateou pelos cantos antes de
varrer tudo para
dentro da bolsa. Harry se sentiu ainda pior quando chegaram
ao seu cofre. Tentou
bloquear a visão do conteúdo enquanto enfiava,
apressadamente, mãos cheias de
moedas em uma bolsa de couro.
De volta aos degraus de mármore, eles se separaram. Percy
murmurou
qualquer coisa sobre a necessidade de comprar uma pena nova. Fred e Jorge
tinham visto um amigo de Hogwarts, Lino Jordan. A Sra. Weasley e Gina iam a
uma loja de vestes de segunda mão. O Sr. Weasley insistia em
levar os Granger
ao Caldeirão Furado para tomar um drinque.
— Vamos nos encontrar na Floreios e Borrões dentro de uma hora para
comprar o material escolar — disse a Sra. Weasley, se afastando com Gina. —
E nem pensar em entrar na Travessa do Tranco! — gritou ela
para os gêmeos que
seguiam na direção oposta.
Harry, Rony e Hermione caminharam pela Rua tortuosa, calçada
de
pedras. A bolsa de ouro, prata e bronze que retinia
alegremente no bolso de Harry
estava pedindo para ser gasta, de modo que ele comprou três
grandes sorvetes
de morango e manteiga de amendoim, que os três lamberam
felizes enquanto
subiam o beco, examinando as vitrines fascinantes das lojas. Rony admirou,
cobiçoso, um conjunto completo de vestes da grife Chudley
Cannon, na vitrine da
Artigos de Qualidade para
Quadribol, até que Hermione puxou os dois para irem
comprar tinta e pergaminho na loja ao lado.
Na Gambol & Japes — Jogos de Magia, eles encontraram
Fred, Jorge e
Lino Jordan, que estavam fazendo um estoque de fogos de artifício. Dr.
Filisbuteiro, que disparavam molhados e, não aqueciam, e num
brechó cheio de
varinhas quebradas, balanças de latão empenadas e velhas
capas manchadas de
poções, os garotos deram de cara com Percy, profundamente
absorto na leitura
de um livro muito chato intitulado Monitores-chefes que se
tornaram poderosos.
— Um estudo dos monitores-chefes de Hogwarts e suas
carreiras — leu
Rony alto na quarta capa. — Parece fascinante...
— Dêem o fora — disse Percy com rispidez.
— E claro que ele é muito ambicioso, o Percy já planejou
tudo... Quer ser
Ministro da Magia... — comentou Rony para Harry e Hermione
em voz baixa
quando deixaram o irmão sozinho.
Uma hora depois eles rumaram para a Floreios e Borrões. Não eram de
maneira alguma os únicos que se dirigiam à livraria. Ao se aproximarem, viram,
para sua surpresa, uma quantidade de gente que se acotovelava à porta da loja,
tentando entrar. A razão disso estava anunciada em uma grande faixa estendida
nas janelas do primeiro andar.
GILDEROY LOCKHART
Autografa sua autobiografia
“O MEU EU MÁGICO”
Hoje das 12:30h às 16:30h
— Vamos poder conhecê-lo! — gritou Hermione esganiçada. — Quero
dizer, ele é o autor de quase toda a nossa lista de livros!
A aglomeração parecia ser formada, em sua maioria, por bruxas mais ou
menos da idade da Sra. Weasley. Um bruxo de ar atarantado
estava postado à
porta, dizendo:
— Calma, por favor, minhas senhoras... Não empurrem, isso...
Cuidado
com os livros, agora...
Harry, Rony e Hermione espremeram-se para entrar na loja.
Uma longa
fila serpeava até o fundo
da loja, onde Gilderoy Lockhart autografava seus livros.
Cada um dos meninos apanhou um exemplar de O Livro Padrão
dos Feitiços,
2ª série, e se enfiaram sorrateiros no inicio da fila onde
já aguardavam os outros
meninos com o Sr. e a
Sra. Weasley.
— Ah, chegaram, que bom! — disse a Sra. Weasley. Ela parecia
ofegante
e não parava de ajeitar os cabelos. — Vamos vê-lo em um
minuto...
Aos poucos Gilderoy Lockhart se tornou visível, sentado a
uma mesa,
cercado de grandes cartazes com o próprio rosto, todos
piscando e exibindo
dentes ofuscantes de tão brancos.
O verdadeiro Lockhart estava usando vestes azul-miosótis
que combinavam à perfeição com os seus olhos; seu chapéu
cônico de bruxo se
encaixava em um ângulo pimpão sobre os cabelos ondulados.
Um homenzinho irritadiço dançava à sua volta, tirando fotos com uma
máquina enorme que soltava baforadas de fumaça púrpura a
cada
flash enceguecedor.
— Saia do caminho, você ai — rosnou ele para Rony, recuando
para se
posicionar em um ângulo melhor. — Trabalho para o Profeta
Diário.
— Grande coisa — disse Rony, esfregando o pé que o fotógrafo
pisara.
Gilderoy ouviu-o. Ergueu os olhos. Viu Rony — e em seguida viu Harry
Potter.
Encarou-o. Então se levantou de um salto e decididamente
gritou:
— Não pode ser, Harry Potter!
A multidão se dividiu, murmurando agitada; Lockhart
adiantou-se, agarrou
o braço de Harry e puxou-o para frente. A multidão
prorrompeu em aplausos.
A cara de Harry estava em fogo quando Lockhart apertou sua
mão para o
fotógrafo, que batia fotos feito louco, dispersando fumaça
sobre os Weasley.
— Dê um belo sorriso, Harry — disse Lockhart por entre os
dentes
faiscantes. — Juntos, você e eu valemos uma primeira página.
Quando ele finalmente soltou a mão de Harry, o garoto não conseguia
sentir os dedos. E tentou se esgueirar para junto dos Weasley, mas Lockhart
passou um braço pelos seus ombros e segurou-o com firmeza ao
seu lado.
— Minhas senhoras e meus senhores — disse em voz alta, ao
mesmo
tempo que pedia silêncio com um gesto. — Que momento extraordinário este! O
momento perfeito para anunciar uma novidade que estou
guardando só para mim
há algum tempo!
— Quando o jovem Harry entrou na Floreios e Borrões hoje, só
queria
apenas comprar a minha autobiografia, com a qual eu terei o
prazer de presenteá-lo agora. — A multidão tornou a aplaudir. — Ele não fazia idéia —, continuou
Lockhart, dando uma sacudidela em Harry que fez os óculos do
menino
escorregarem para a ponta do
nariz, — que em breve estaria recebendo muito,
muito mais do que o meu livro O Meu Eu Mágico. Ele e seus
colegas irão receber
o meu eu mágico em carne e osso.
— Sim, senhoras e senhores, tenho o grande prazer de
anunciar que, em
setembro próximo, irei assumir a função de professor de Defesa contra as Artes
das Trevas na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts!
A multidão deu vivas e bateu palmas, e Harry se viu
presenteado com as
obras completas de Gilderoy Lockhart. Cambaleando sob o peso
dos livros, ele
conseguiu fugir das luzes da ribalta para a periferia do salão, onde Gina estava
parada com o seu novo caldeirão.
— Fique com eles — murmurou Harry para a menina, virando os
livros no
caldeirão.
— Eu vou comprar os meus...
— Aposto que você adorou isso, não foi, Potter? — disse uma
voz que
Harry não teve problema em reconhecer. Ele endireitou o
corpo e se viu cara
a cara com Draco Malfoy, que exibia o sorriso de desdém de
sempre.
— O Famoso Harry Potter —, continuou Malfoy. — Não consegue
nem ir a
uma livraria sem parar na primeira página do jornal.
— Deixe ele em paz, ele nem queria isso — disse Gina. Era a
primeira vez
que falava na frente de Harry. E olhava feio para Malfoy.
— Potter, você arranjou uma namorada! — disse Malfoy
arrastando as
sílabas.
Gina ficou escarlate enquanto Rony e Hermione lutavam para chegar
até eles, sobraçando pilhas de livros de Lockhart.
— Ah, é você — exclamou Rony, olhando para Malfoy como se
ele fosse
uma coisa desagradável, grudada na sola do sapato. — Aposto como ficou
surpreso de ver Harry aqui, hein?
— Não tão surpreso como estou de ver você numa loja, Weasley —
retrucou Malfoy. — Imagino que seus pais vão passar fome um
mês para pagar
todas essas compras.
Rony ficou tão vermelho quanto Gina. Largou os livros no
caldeirão,
também, e partiu para cima de Malfoy, mas Harry e Hermione o
agarraram pelo
casaco.
— Rony! — chamou o Sr. Weasley, que procurava se aproximar
com Fred
e Jorge. — Que é que está fazendo? Está muito cheio aqui,
vamos para fora.
— Ora, ora, ora, Arthur Weasley.
Era o Sr. Malfoy. Estava parado com a mão no ombro de Draco,
com
um sorriso de desdém igual ao do filho.
— Lúcio — disse o Sr. Weasley, dando um frio aceno com a
cabeça.
— Muito trabalho no Ministério, ouvi dizer — falou o Sr.
Malfoy. — Todas
aquelas blitz... Espero que estejam lhe pagando hora extra!
Ele meteu a mão no caldeirão de Gina e tirou, do meio dos
livros de capa
lustrosa de Lockhart, um exemplar muito antigo e surrado de
um Guia
Sobre Transfiguração Para Principiante.
— É óbvio que não — concluiu o Sr. Malfoy. — Ora veja, de
que serve ser
uma vergonha de bruxo se nem ao menos lhe pagam bem para
isso?
O Sr. Weasley corou com mais intensidade do que Rony e Gina.
— Nós temos idéias muito diferentes do que é ser uma
vergonha de
bruxo, Malfoy.
— Visivelmente — disse o Sr. Malfoy, seus olhos claros
desviando-se para
o Sr. e Sra. Granger,
que observavam apreensivos. — As pessoas
com quem
você anda, Weasley... E pensei que sua família já tinha
batido no fundo do poço...
Ouviu-se uma pancada metálica quando o caldeirão de Gina
saiu voando;
o Sr. Weasley se atirara
sobre o Sr. Malfoy, derrubando-o contra uma prateleira.
Dúzias de livros de soletração despencaram com estrondo em
sua cabeça; ouviu-se um grito "Pega ele, papai" — dado por Fred e
Jorge; a Sra. Weasley gritava
"Não, Arthur, não"; a multidão estourou, recuando
e derrubando mais prateleiras.
— Senhores, por favor, por favor! — pedia o assistente, e, depois, mais
alto que a algazarra reinante. — Vamos parar com isso,
cavalheiros, vamos parar
com isso...
Hagrid caminhava em direção aos dois atravessando um mar de
livros.
Num instante ele separou o Sr. Weasley e o Sr. Malfoy. O Sr.
Weasley com o lábio
cortado e o Sr. Malfoy fora atingido no olho por uma
Enciclopédia dos sapos. Ele
ainda segurava o livro velho de Gina sobre transfiguração.
Atirou-o nela, os olhos
brilhando de malícia.
— Aqui, tome o seu livro, é o melhor que seu pai pode lhe
dar...
E, desvencilhando-se da mão de Hagrid, chamou Draco e saíram
da loja.
— Você devia ter fingido que ele não existia, Arthur — disse
Hagrid, quase
erguendo o Sr. Weasley do chão enquanto este endireitava as
vestes. — Podre
até a alma, a família toda, todo mundo sabe disso. Não vale
a pena dar ouvidos a
nenhum Malfoy. Sangue ruim, é o que é. Vamos agora, vamos
sair daqui.
O assistente parecia querer impedi-los de sair, mas mal
chegava à cintura
de Hagrid e pareceu pensar duas vezes. Eles subiram apressados a rua, os
Granger tremendo de susto e a Sra. Weasley fora de si de fúria.
— Um belo exemplo para os seus filhos... Saindo no tapa em
público...
Que é que o Gilderoy Lockhart deve ter pensado...
— Ele estava satisfeito — informou Fred. — Você não ouviu o
que ele
disse quando estávamos saindo? Perguntou àquele cara do Profeta Diário se ele
podia incluir a briga na notícia, disse que tudo era
publicidade.
Mas foi um grupo mais sereno que voltou à lareira do
Caldeirão Furado,
de onde Harry, os Weasley e todas as compras iriam retornar
à Toca, usando o Pó
de Flu. Eles se despediram dos Granger, que iriam atravessar
o bar para chegar à
rua dos trouxas, do outro lado; o Sr. Weasley começou a
perguntar ao casal como
funcionavam os pontos de ônibus, mas parou de repente ao ver
o olhar da Sra.
Weasley.
Harry tirou os óculos e guardou-os bem seguros no bolso
antes de se
servir do Pó de Flu. Decididamente não era o seu meio de
transporte favorito.
CAPÍTULO CINCO
O salgueiro lutador
O fim das férias de verão chegou muito depressa para o gosto
de Harry.
Ele estava ansioso para regressar a Hogwarts, mas aquele mês
na Toca fora o
mais feliz de sua vida. Era difícil não ter inveja de Rony
quando pensava nos
Dursley e no tipo de boas-vindas que poderia esperar na próxima vez que
aparecesse na Rua dos Alfeneiros.
Na última noite de férias, a Sra. Weasley fez aparecer um
jantar suntuoso
que incluiu todos os pratos favoritos de Harry, terminando
com um pudim
caramelado de dar água na boca. Fred e Jorge encerraram a
noite com uma
queima de fogos Filibusteiro; encheram a cozinha de estrelas vermelhas e azuis
que ricochetearam do teto para as paredes durante no mínimo
uma hora. Então
chegou a hora da última caneca de chocolate quente e de ir
para a cama.
Eles demoraram para viajar na manhã seguinte. Acordaram ao
nascer do
sol, mas por alguma razão pareciam ter um bocado de coisas para fazer. A Sra.
Weasley corria de um lado para outro mal-humorada,
procurando meias
desaparelhadas e penas de escrever; as pessoas não paravam
de dar encontroes
nas escadas, meio vestidas, levando pedaços de torradas nas
mãos; e o Sr.
Weasley quase quebrou o pescoço, ao tropeçar em uma galinha
solta quando
atravessava o quintal carregando o malão de Gina até o
carro.
Harry não conseguiu imaginar como é que oito pessoas seis
malôes, duas
corujas e um rato iam caber em um pequeno Ford Anglia. É claro que ele não
contara com os acessórios especiais que o Sr. Weasley
acrescentara.
— Nem uma palavra a Molly — cochichou ele a Harry quando
abriu a mala
do carro e lhe mostrou como a aumentara por artes mágicas
para que a bagagem
coubesse sem problemas.
Quando finalmente todos tinham embarcado no carro, a Sra.
Weasley
olhou para o banco traseiro, onde Harry, Rony, Fred, Jorge e
Percy estavam
sentados confortavelmente lado a lado e disse:
— Os trouxas sabem mais do que nós queremos reconhecer, não é? —
Ela e Gina entraram no banco dianteiro que fora aumentado de tal maneira que
parecia um banco de jardim público. — Quero dizer, olhando
de fora, a pessoa
nunca imaginaria como o carro é espaçoso, não é?
O Sr. Weasley ligou o motor e saiu do quintal, enquanto Harry se virava
para trás para dar uma última olhada na casa. Mal teve tempo
para pensar quando
a veria outra vez e já estavam de volta: Jorge esquecera a
caixa de fogos
Filibusteiro. Cinco minutos depois, tornaram a parar no
quintal para Fred ir buscar
depressa sua vassoura. Tinham quase chegado à rodovia quando
Gina gritou que
deixara o diário em casa. Na altura em que tornaram a
embarcar no carro eles já
estavam muito atrasados e muito mal-humorados.
O Sr. Weasley olhou para o relógio e depois para a sua
mulher.
— Molly, querida...
— Não, Artur.
— Ninguém veria. Esse botãozinho aqui é um multiplicador de
invisibilidade que instalei, isso nos faria decolar e voar
acima das nuvens.
Estaríamos lá em dez minutos e ninguém saberia...
— Eu disse não, Arthur, não em plena luz do dia.
Eles chegaram à estação de King’s Cross às quinze para onze.
O Sr.
Weasley disparou até o outro lado da Rua para buscar carrinhos para a
bagagem e todos correram para a estação.
Harry tomara o Expresso de Hogwarts no ano anterior. A parte
complicada
era chegar à plataforma 9 e ½, que não era visível aos olhos
dos trouxas. O que a
pessoa tinha que fazer era atravessar uma barreira sólida
que separava as
plataformas 9 e 10. Não machucava, mas tinha que ser feito
com cautela, de
modo que os trouxas não vissem a pessoa desaparecer.
— Percy primeiro — disse a Sra. Weasley, consultando nervosa
o relógio
no alto, que indicava que tinham apenas cinco minutos para desaparecer pela
barreira sem ser vistos.
Percy adiantou-se com passos firmes e desapareceu. O Sr. Weasley o
seguiu; depois Fred e Jorge.
— Vou levar Gina e vocês dois venham logo atrás de nós —
disse a Sra.
Weasley a Harry e Rony, agarrando a mão de Guia e se
afastando. Num piscar de
olhos as duas tinham desaparecido.
-Vamos juntos, só temos um minuto — disse Rony a Harry.
Harry verificou se a gaiola de Edwiges estava bem encaixada
em cima do
malão e virou o carrinho de frente para a barreira. Sentia-se absolutamente
confiante; isto não era nem de longe tão desconfortável
quanto usar o Pó de Flu.
Os dois se abaixaram sob a barra dos carrinhos e avançaram
decididos para a
barreira, ganhando velocidade. Quando faltavam apenas poucos
passos eles
desataram a correr e... TAPUM.
Os dois carrinhos bateram na barreira e quicaram de volta; o
malão de
Rony caiu com estrondo, Harry foi derrubado, a gaiola de
Edwiges saiu saltando
pelo chão encerado e ela rolou para fora, gritando indignada; as pessoas à volta
olharam e um guarda próximo berrou:
— Que diabo vocês acham que estão fazendo?
— Perdi o controle do carrinho — ofegou Harry, apertando as
costelas ao
se levantar. Rony teve que recolher Edwiges, a coruja fazia
tanto escândalo que
muitos dos circunstantes resmungaram contra a crueldade para
com os animais.
— Por que não podemos atravessar? — sibilou Harry para Rony.
— Não sei...
Rony olhou desorientado para os lados. Uns dez curiosos
continuavam a
observá-los.
— Vamos perder o trem — cochichou Rony. — Não entendo por
que o
portão se fechou...
Harry olhou para o enorme relógio no alto com uma sensação ruim na
boca do estômago. Dez segundos... Nove segundos... Ele levou o carrinho à
frente com cautela até encostá-lo na barreira e empurrou-o
com toda a força. O
metal continuou sólido. — Três segundos... Dois segundos...
Um segundo...
— Já foi — disse Rony, parecendo atordoado. — O trem foi
embora. E se
papai e mamãe não conseguirem voltar para nós? Você tem algum dinheiro de
trouxas?
Harry deu uma risada cavernosa.
— Os Dursley não me dão dinheiro há uns seis anos.
Rony encostou o ouvido na barreira fria.
— Não ouço nada — informou tenso. — Que vamos fazer? Não sei
quanto
tempo vai levar para mamãe e papai voltarem.
Eles olharam para os lados. As pessoas continuavam a
vigiá-los,
principalmente por causa dos gritos de Edwiges que não
paravam.
— Acho que é melhor irmos esperar ao lado do carro — sugeriu
Harry. —
Estamos atraindo atenção de mais...
— Harry! — exclamou Rony, com os olhos brilhando. — O carro!
— Que tem o carro?
— Podemos voar para Hogwarts no carro!
— Mas eu pensei...
— Estamos imobilizados, certo? E temos que voltar para a
escola, não é?
E até os bruxos de
menor idade podem usar a magia quando há uma
emergência grave, seção dezenove ou coisa assim da Lei de
Restrição ao...
— Mas sua mãe e seu pai... — disse Harry, empurrando mais
uma vez a
barreira na esperança inútil de que ela cedesse. — Como é
que vão chegar em
casa?
— Eles não precisam do carro! — disse Rony impaciente. — Eles
sabem aparatar, sabe, desaparecer aqui e reaparecer em casa! Eles só usam o
Pó de Flu e o carro porque somos todos menores e ainda não
temos permissão
para aparatar.
A sensação de pânico de Harry de repente se transformou em
excitação.
— Você sabe voar?
— Não tem problema — disse Rony, virando o carrinho de
frente para a
saída. — Anda, vamos. Se nos apressarmos poderemos seguir o
Expresso
de Hogwarts.
Passaram então pela aglomeração de trouxas curiosos, saíram
da estação
e voltaram à Rua secundária onde ficara estacionado o velho
Ford Anglia.
Rony destrancou a enorme mala do carro com vários toques
seguidos de
varinha.
Tornaram a carregar a bagagem na mala, puseram Edwiges no
banco
traseiro e embarcaram.
— Veja se não tem ninguém olhando — disse Rony, ligando a
ignição com
outro toque de varinha. Harry meteu a cabeça para fora da
janela: o
tráfego roncava pela estrada principal adiante, mas a rua
deles estava deserta.
— Tudo bem — falou.
Rony apertou um botãozinho prateado no painel. O carro em
que estavam
desapareceu — e eles também. Harry sentiu o banco vibrar
embaixo dele, ouviu o
ruído do motor, sentiu as mãos em cima dos joelhos e os
óculos em cima do nariz,
mas do que conseguia ver, virara um par de olhos que
flutuavam acima do chão,
numa rua suja cheia de carros estacionados.
— Vamos — disse a voz de Rony vindo da direita.
E o chão e os edifícios sujos de cada lado se distanciaram e
foram
desaparecendo de vista, à medida que o carro decolava; em
segundos, Londres
inteira estava lá embaixo, enfumaçada e cintilante.
Então ouviu-se um estampido e o carro, Harry e Rony
reapareceram.
— Epa — exclamou Rony, batendo no botão da invisibilidade.
— Está com defeito.
Os dois socaram o botão. O carro desapareceu. E tornou a
reaparecer aos
pouquinhos.
— Segure firme! — berrou Rony e pisou fundo no acelerador; eles
dispararam em linha reta para dentro de nuvens baixas e
repolhudas e tudo ficou
cinzento e enevoado.
— E agora? — perguntou Harry, piscando diante da camada
sólida de
nuvens que os comprimia de todos os lados.
— Temos que ver o trem para saber que direção vamos tomar —
disse
Rony.
— Mergulhe outra vez... Depressa.
Eles baixaram até ficar sob as nuvens e se viraram no banco,
tentando ver
o solo.
— Estou vendo! — gritou Harry. — Bem na nossa frente, lá.
O Expresso de Hogwarts ia correndo embaixo deles como uma
cobra
vermelha.
— Rumo norte — disse Rony, verificando a bússola no painel.
— Tudo
bem, só vamos precisar verificar de meia em meia hora mais
ou menos, segure
firme... — E eles dispararam para o alto, furando as nuvens.
Um minuto depois,
saíram numa camada banhada de sol.
Era um mundo diferente. Os pneus do carro roçavam de leve o
mar de
nuvens fofas, o céu um azul forte e infinito sob um sol
claro de cegar — Agora só
temos que nos preocupar com os aviões — disse Rony.
Eles se entreolharam e caíram na gargalhada; durante algum tempo não
conseguiram parar.
Era como se tivessem mergulhado num sonho fabuloso. Isto, pensou
Harry, era sem dúvida o único modo de viajar — deixando para trás os
redemoinhos e as torrinhas de nuvens branquíssimas, em um
carro inundado pela
Luz quente e clara do sol, com um pacotão de caramelos no
porta-luvas, e a
perspectiva de ver as caras invejosas de Fred e Jorge quando
eles aterrissassem,
suave e espetacularmente, no vasto gramado diante do castelo
de Hogwarts.
Eles verificavam regularmente a posição do trem durante o
vôo que os
levava cada vez mais para o norte e, em cada mergulho abaixo
das nuvens,
descortinavam uma paisagem diferente. Londres não tardou a
ficar muito para
trás, substituída por campos verdes e geométricos que, por sua vez, cederam
lugar a grandes extensões de terra roxa, pantanosa, uma
metrópole que pululava
de carros que lembravam formigas multicoloridas,
cidadezinhas com igrejas de
brinquedo.
Várias horas tranqüilas depois, no entanto, Harry teve que
admitir que o
divertimento estava começando a cansar. Os caramelos tinham
deixado os dois
cheios de sede e não havia nada para beber. Ele e Rony
tinham despido os
suéteres, mas a camiseta de Harry estava grudando no encosto
do banco, e seus
óculos não paravam de escorregar pela ponta do nariz suado. Ele deixara de
reparar nas formas fantásticas das nuvens e agora pensava
com saudades no
trem, quilômetros abaixo, onde podia comprar suco de abóbora
bem gelado em
um carrinho empurrado por uma bruxa gorducha. Porque não tinham podido
chegar à plataforma 9 e ½?
— Não pode faltar muito mais, não é? — perguntou Rony rouco, horas
depois, quando o sol começou a afundar pelo chão de nuvens,
fingindo-o de rosa
forte.
— Pronto para verificar outra vez a posição do trem?
O trem continuava embaixo deles, contornando uma montanha de pico
nevado. Escurecera
bastante sob a abóbada de nuvens. Rony
pisou fundo no
acelerador e fez o carro subir outra vez, mas ao fazer isto,
o motor começou a
soltar um silvo agudo.
Harry e Rony trocaram olhares apreensivos.
— Provavelmente ele está cansado — disse Rony. — Nunca foi
tão longe
antes...
E os dois fingiram não notar o ruído que ficava cada vez
mais forte, à
medida que o céu ia escurecendo cada vez mais. As estrelas
espocavam na
escuridão.
Harry tornou a vestir o suéter, tentando fingir que não via que os
limpadores do pára-brisa agora se moviam devagar, como se
protestassem.
— Falta pouco — disse Rony mais para o carro do que para
Harry —, falta
pouco agora — e deu umas palmadinhas nervosas no painel.
Quando voltaram a voar sob as nuvens um pouco mais tarde,
tiveram que
apurar a vista na escuridão para encontrar um marco que
conhecessem.
— Ali! gritou Harry, sobressaltando Rony e Edwiges. — Bem em
frente!
Recortado no horizonte escuro, no alto do penhasco sobre o
lago,
estavam as torres e torrinhas do castelo de Hogwarts.
Mas o carro começara a tremer e a perder velocidade.
— Vamos — disse Rony em tom
de quem quer adular, dando uma
sacudidela no volante-, quase chegamos, vamos...
O motor gemia. Finos penachos de fumaça saíam por debaixo do
capô.
Harry viu-se agarrando as bordas do banco com toda força ao
voarem em direção
ao lago.
O carro deu um estremeção feio. Ao espiar pela janela, Harry
viu a
superfície lisa, escura e espelhada da água, um quilômetro e
meio abaixo. Os nós
dos dedos de Rony estavam brancos de tanto apertar o
volante. O carro
estremeceu outra vez.
— Vamos — murmurou Rony.
Sobrevoaram o lago... O castelo estava bem à frente... Rony
apertou o
acelerador.
Ouviu-se uma batida metálica e alta, um engasgo e o motor morreu
de vez.
— Epa — exclamou Rony, em meio ao silêncio.
O nariz do carro afundou. Estavam caindo, ganhando
velocidade,
rumando direto para a parede maciça do castelo.
— Nããâââao! — berrou Rony, dando um golpe de direção;
erraram o
escuro muro de pedra por centímetros, porque o carro
descreveu um grande arco
e voou sobre as estufas às escuras, depois sobre a horta e depois sobre os
gramados sombrios, perdendo altura todo o tempo.
Rony largou de vez o volante e puxou a varinha do bolso
traseiro.
— PARE! PARE! — berrou, golpeando o painel e o pára-brisa,
mas eles
continuaram a mergulhar, o chão voando ao seu encontro...
— CUIDADO COM AQUELA ÁRVORE! — urrou Harry, atirando-se
sobre
o volante, mas tarde demais... CREQUE.
Com um estrondo de ensurdecer, de metal batendo em madeira,
eles
colidiram com um tronco avantajado e despencaram no chão com
um baque forte.
O vapor que saía por baixo do capô amassado formava nuvens
enormes. Edwiges
guinchava de terror; um galo do tamanho de uma bola de golfe
latejou na cabeça
de Harry onde ele batera no pára-brisa e, à sua direita, Rony deixou escapar um
gemido baixo e desesperado.
— Você está bem? — perguntou Harry com urgência na voz.
— Minha varinha — respondeu Rony com a voz trêmula. — Olhe a
minha
varinha.
Ela quase se partira em duas; a ponta balançava inerte,
segura apenas
por meia dúzia de farpas de madeira.
Harry abriu a boca para dizer que tinha certeza de que
poderiam consertá-la na escola, mas nem chegou a falar. Naquele mesmíssimo
instante, alguma
coisa bateu na lateral do carro com a força de um touro
furioso, atirando Harry
contra Rony, ao mesmo tempo que outra pancada igualmente
pesada atingia o
teto.
— Que está acontecen... — exclamou Rony, arregalando os
olhos para o
pára-brisa, enquanto Harry virava a cabeça em tempo
dever um galho grosso
como uma jibóia que o amassava. A árvore em que tinham
batido atacava os dois.
Curvara o tronco quase ao meio e seus ramos nodosos socavam
cada centímetro
do carro que conseguiam alcançar.
— Caracas! —, exclamou Rony quando outro ramo retorcido fez uma
grande mossa na porta do lado dele; o pára-brisa agora vibrava sob uma
saraivada de golpes aplicados por galhinhos em forma de nós,
e um galho grosso
como um aríete socava furiosamente o teto, que parecia estar
afundando...
— Se manda! —, gritou Rony, atirando todo o peso contra a
porta, mas no
segundo seguinte ele era empurrado de volta contra o colo de
Harry por um direto
no queixo dado por outro galho.
— Estamos perdidos! —, gemeu ele quando o teto afundou, mas
de
repente o fundo do carro começou a vibrar — o motor pegara
outra vez.
— Dê marcha ré — berrou Harry, e o carro disparou para trás;
a árvore
continuava a tentar atingi-los; ouviam as raízes rangerem
como se se
rasgassem, tentando golpeá-los enquanto se afastavam dela a
toda.
— Essa — ofegou Rony — foi por pouco. Muito bem, carro.
O carro, porém, chegara ao limite de suas forças. Com dois
fortes trancos,
as portas se escancararam e Harry sentiu o banco deslizar
para um lado. No
momento seguinte ele se viu estatelado no chão úmido.
Pancadas fortes lhe
informaram que o carro estava ejetando a bagagem deles da
mala; a gaiola de
Edwiges voou pelos ares e se abriu; ela soltou um guincho raivoso e voou veloz
para o castelo, sem nem ao menos olhar para trás. Então,
amassado, arranhado e
fumegando o carro saiu roncando pela escuridão, as lanternas
traseiras brilhando
com raiva.
— Volte aqui! — gritou Rony para o carro, brandindo a varinha
partida. —
Papai vai me matar!
Mas o carro desapareceu de vista com uma última gargalhada
do cano de
descarga.
— Dá para acreditar na nossa sorte? — disse Rony infeliz, abaixando-se
para recolher Perebas. — De todas as árvores em que podíamos
ter batido,
tínhamos que bater nessa que revida?
Ele espiou por cima do ombro a velha árvore, que continuava a agitar os
ramos ameaçadoramente.
— Vamos — disse Harry cansado —, é melhor irmos logo para a
escola...
Não se pareceu nada com a chegada triunfal que eles tinham
imaginado.
Os músculos duros, enregelados e contundidos, os dois
apanharam as alças dos
malões e começaram a arrastá-los pela encosta gramada acima,
em direção à
imponente porta de entrada de carvalho.
— Acho que a festa já começou — comentou Rony, largando a
mala ao pé
dos degraus da entrada e indo espiar silenciosamente por uma
janela iluminada.
— Ei, Harry vem ver, é a Seleção!
Harry correu à janela e juntos, ele e Rony contemplaram o
Salão Principal.
Uma quantidade de velas pairava no ar sobre as quatro mesas
compridas
e lotadas, fazendo os pratos e taças de ouro faiscarem. No
alto, o teto
encantado, que sempre refletia o céu lá fora, pontilhado de
estrelas.
Em meio à floresta de chapéus cônicos de Hogwarts, Harry viu
uma longa
fila de principiantes de cara assustada entrar no Salão.
Gina estava entre eles,
facilmente identificável pelos cabelos da família Weasley, muito vívidos.
Entrementes a Profº. McGonagall, uma bruxa de óculos que
usava os cabelos
presos em um coque, estava colocando o famoso Chapéu Seletor
sobre um
banquinho diante dos recém-chegados.
Todo ano, aquele chapéu antigo, remendado, esfiapado e sujo,
selecionava os novos alunos para as quatro casas de Hogwarts
(Grifinória, Lufa-Lufa, Corvinal e Sonserina). Harry lembrava-se bem da noite
em que o colocara
na cabeça, exatamente há um ano, e esperara petrificado, a
decisão do chapéu
que murmurava audivelmente em seu ouvido. Por alguns
segundos terríveis ele
receara que o chapéu fosse colocá-lo na Sonserina, a casa de
onde saía um
número maior de bruxos e bruxas das trevas do que de
qualquer outra — mas ele
acabara indo para a Grifinória, junto com Rony, Hermione e o
resto dos Weasley.
No último trimestre letivo, Harry e Rony tinham ajudado a Grifinória a ganhar o
Campeonato das Casas, vencendo Sonserina pela primeira vez
em sete anos.
Um garoto muito pequeno, de cabelos castanho-acinzetados foi
chamado
para colocar o chapéu na cabeça. O olhar de Harry passou por
ele e foi pousar no
lugar em que Dumbledore, o diretor, assistia à cerimônia
sentado à mesa dos
funcionários, sua longa barba prateada e os óculos de meia-lua brilhando à
luz
das velas. Vários lugares adiante, Harry viu Gilderoy Lockhart, com suas vestes
azuis. E lá na ponta sentava-se Hagrid, enorme e peludo,
bebendo grandes goles
de sua taça.
— Espere aí... — cochichou Harry para Rony. — Há uma cadeira
vaga na
mesa dos funcionários... Onde está o Snape?
Severo Snape era o professor de que Harry menos gostava. Por acaso
Harry era o aluno de quem Snape menos gostava também. Cruel,
irônico e
detestado por todo mundo, exceto pelos alunos de sua própria
casa (Sonserina),
Snape ensinava Poções.
— Vai ver ele está doente! — disse Rony esperançoso.
— Vai ver ele foi embora — disse Harry —, porque não
conseguiu o lugar
de professor de Defesa contra as Artes das Trevas outra vez!
— Ou vai ver foi despedido! — disse Rony entusiasmado. — Quero
dizer,
todo mundo o detesta...
— Ou vai ver — disse uma voz muito seca atrás deles — está
esperando
para saber por que vocês dois não chegaram no trem da
escola.
Harry virou-se depressa. Ali, as vestes negras ondeando à brisa gelada,
achava-se parado Severo Snape. Era um homem magro, com a pele macilenta,
um nariz curvo e cabelos negros e oleosos até os ombros e,
naquele momento,
sorria de um jeito que dizia a Harry e Rony que eles estavam numa baita
encrenca.
— Me acompanhem — disse Snape.
Sem nem ousarem se entreolhar, Harry e Rony seguiram Snape
pela
escada e entraram no enorme saguão cheio de ecos, iluminado
por tochas. Um
cheiro delicioso de comida vinha do Salão Principal, mas
Snape os levou para
longe do calor e da luz e desceu uma estreita escada de
pedra que levava às
masmorras.
— Para dentro! — disse ele, indicando a porta que abrira no
corredor frio.
Eles entraram na sala de Snape, trêmulos. As paredes
sombrias estavam
cobertas de prateleiras com grandes frascos, em que flutuava
todo tipo de coisa
nojenta de que, naquele momento, Harry nem queria saber o
nome. A lareira
estava apagada e vazia. Snape fechou a porta e virou-se para
encará-los.
— Então — disse com suavidade — o trem não é bastante bom para o
famoso Harry Potter e seu leal escudeiro Weasley. Queriam
chegar acontecendo,
não foi, rapazes?
— Não, senhor, foi a barreira na estação de King s Cross,
ela...
— Silêncio — disse Snape secamente. — Que foi que fizeram
com o
carro?
Rony engoliu em seco. Não era a primeira vez que Snape dava
a Harry a
impressão de ser capaz de ler pensamentos. Mas um momento
depois, ele
compreendeu, quando Snape desdobrou o Profeta Vespertino
daquele dia.
— Vocês foram vistos — sibilou o professor, mostrando a manchete:
FORD ANGLIA VOADOR INTRIGA TROUXAS. E começou a ler em voz
alta:
"Dois trouxas
em Londres, convencidos de terem visto
um velho carro sobrevoar a torre dos Correios... Ao meio-dia
em Norfolk, a Sra. Hetty
Bayliss, quando pendurava roupa
para secar... O Sr. Angus Fleet, de Peebles, comunicou à
policia..."
— Um total de seis ou sete trouxas. Acredito que o seu pai
trabalha no
departamento que coíbe o mal uso de artefatos dos trouxas? —
perguntou ele,
erguendo os olhos para Rony com um sorriso ainda mais
desagradável. — Tsk,
tsk, tsk... O próprio filho dele...
Harry teve a sensação de que acabara de levar um direto no
estômago,
aplicado por um dos ramos mais parrudos da árvore maluca. Se
alguém
descobrisse que o Sr. Weasley havia enfeitiçado o carro...
Não tinha pensado
nisso...
— Reparei na minha busca pelo parque que houve considerável
dano a
um salgueiro lutador muito valioso — continuou Snape.
— Aquela árvore causou mais dano a nós do que nós a... —
deixou
escapar Rony.
— Silêncio! — disse Snape outra vez. — Infelizmente vocês
não fazem
parte da minha Casa, e a decisão de expulsá-los não cabe a
mim. Vou buscar
as pessoas que têm este prazeroso poder. Esperem aqui.
Harry e Rony se entreolharam pálidos. Harry não sentia mais
fome.
Sentia-se extremamente enjoado. Tentou não olhar para uma
coisa grande e
pegajosa que estava suspensa em um liquido verde, em uma prateleira atrás da
escrivaninha de Snape.
Se Snape tivesse ido buscar a Profª. McGonagall, diretora da
Casa
Grifinória, eles tampouco estariam em melhor situação. Poderia ser mais justa do
que Snape, mas era rigorosíssima. Dez minutos depois, Snape voltou e não deu
outra, era a Profª. McGonagall que o acompanhava. Harry já a
vira várias vezes,
mas ou se esquecera como a boca da professora ficava
contraída, ou nunca a vira
zangada antes.
Ela ergueu a varinha no momento em que entrou. Os dois,
Harry e Rony
se encolheram, mas ela meramente a apontou para a lareira apagada, onde as
chamas irromperam instantaneamente.
— Sentem-se — disse, e os dois recuaram e se sentaram em
cadeiras
junto à lareira. — Expliquem-se — disse, os óculos brilhando
agourentos.
Rony saiu contando a história a começar pela barreira da
estação que se
recusara a deixá-los passar.
— ... Então não tivemos outra escolha, professora, não
podíamos
embarcar no trem.
— Por que não nos mandaram uma carta por coruja? Creio que
você tem
uma coruja? — disse a Profª. McGonagall, olhando para Harry
com frieza.
Harry ficou boquiaberto. Agora que ela dissera, parecia a
coisa óbvia para
ter sido feita.
— Eu... Não pensei...
— Isto — tornou a professora — é óbvio.
Ouviu-se uma batida na porta da sala, e Snape, agora com a
cara mais
feliz que nunca, abriu-a. Parado à porta achava-se o
diretor, o Profº. Dumbledore.
O corpo de Harry inteiro ficou insensível. Dumbledore
parecia
anormalmente sério.
Olhou por cima daquele nariz curvo dele, e Harry,
subitamente, viu-se
desejando que ele e Rony
ainda estivessem apanhando do
salgueiro lutador.
Fez-se um longo silêncio. Então Dumbledore disse:
— Por favor, expliquem por que fizeram isso.
Teria sido melhor se tivesse gritado. Harry detestou o
desapontamento
que havia na voz dele. Por alguma razão, não conseguiu
encarar Dumbledore nos
olhos e, em vez disso, falou para os próprios joelhos.
Contou a Dumbledore tudo,
exceto que o Sr. Weasley era o dono do carro enfeitiçado, fazendo parecer que
ele e Rony tinham encontrado o carro voador estacionado do
lado de fora da
estação, por acaso.
Ele sabia que Dumbledore perceberia a coisa na mesma hora,
mas o
diretor não fez perguntas sobre o carro. Quando Harry
terminou, ele apenas
continuou a observá-los através dos óculos de meia-lua.
— Vamos buscar as nossas coisas — disse Rony com a
desesperança na
voz.
— De que é que está falando, Weasley? — vociferou a Profª.
McGonagall.
— Bem, os senhores vão nos expulsar, não é? — disse Rony.
Harry olhou rapidamente para Dumbledore.
— Hoje não, Sr. Weasley — disse Dumbledore. — Mas preciso
incutir em
vocês a gravidade do que fizeram. Vou escrever às duas
famílias hoje à noite.
Devo também preveni-los de que se fizerem isto de novo, não
terei escolha se não
expulsar os dois.
Snape fez cara de quem acaba de ouvir que o Natal foi
cancelado.
Pigarreou e disse:
— Profº. Dumbledore, esses garotos zombaram da lei que
restringe o uso
de magia por menores, causaram sérios danos a uma árvore antiga
e valiosa...
Com certeza atos desta natureza...
— A Proaf. McGonagall é quem decidira sobre o castigo dos
meninos,
Severo — disse Dumbledore calmamente. — Fazem parte da Casa
dela e,
portanto são responsabilidade dela. — E se virou para a
professora: — Preciso
voltar para a festa, Minerva, tenho que dar alguns avisos.
Vamos Severo, tem uma
torta de abóbora deliciosa que quero provar.
Snape lançou um olhar de puro veneno a Harry e Rony ao se
deixar levar
embora da sala, deixando-os sozinhos com a Profª.
McGonagall, que ainda os
observava como uma águia atenta.
— É melhor ir à ala hospitalar, Weasley, você está
sangrando.
— Não é nada demais — disse Rony, limpando depressa com a
manga o
corte sobre o olho. — Professora, eu queria ver a minha irmã
ser selecionada...
— A cerimônia da Seleção já terminou — respondeu ela. — Sua
irmã
também ficou na Grifinória.
— Ah, que bom.
— E por falar na Grifinória... — disse McGonagall muito
ríspida, mas Harry
a interrompeu.
— Professora, quando apanhamos o carro, o ano letivo não
tinha
começado, por isso... Por isso Grifinória não deve perder
pontos, deve? —
terminou ele, observando-a ansioso.
A Profª. McGonagall lançou-lhe um olhar penetrante e ele
teve certeza de
que ela quase sorrira. Pelo menos ficara menos contraída.
— Não vou tirar pontos da Grifinória — e Harry sentiu o chão
muito mais
leve. — Mas os dois vão receber uma detenção.
Foi melhor do que Harry esperara. Quanto a Dumbledore
escrever
aos Dursley, isso não era nada. Harry sabia perfeitamente
que eles só iriam ficar
desapontados que o salgueiro lutador não o tivesse achatado
de vez.
A Profª. McGonagall ergueu novamente a varinha e apontou-a
para a
escrivaninha de Snape. Um grande prato de sanduíches, duas
taças de prata e
uma jarra de suco de abóbora gelado apareceram com um
estalo.
— Vocês vão comer aqui e depois vão direto para o dormitório — disse
ela. — Eu também preciso voltar à festa.
Quando a porta se fechou, Rony deixou escapar um assobio baixo
e
longo.
— Achei que estávamos ferrados — disse ele, agarrando o
sanduíche.
— Eu também — disse Harry, servindo-se.
— Mas dá para acreditar na nossa falta de sorte? — perguntou
Rony com
a voz pastosa porque tinha a boca cheia de galinha e presunto.
— Fred e
Jorge devem ter voado naquele carro umas cinco ou seis vezes
e nunca nenhum
trouxa viu os dois. — Ele engoliu e deu outra grande
dentada. — Por que não
conseguimos atravessar a barreira?
Harry sacudiu os ombros.
— Mas vamos ter que nos cuidar daqui para frente — disse,
tomando um
grande gole do suco de abóbora, cheio de gratidão. —
Gostaria de termos podido
ir à festa...
— Ela não queria que fôssemos nos exibir — disse Rony
ajuizadamente.
— Não quer que as pessoas pensem que somos sabidos, porque
chegamos de
carro voador.
Quando acabaram de comer tudo o que puderam (o prato sempre
tornava
a se encher sozinho) eles se levantaram e deixaram a sala,
tomando o caminho
familiar para a Torre da Grifinória. O castelo estava
silencioso; parecia que a festa
havia acabado. Os dois passaram pelos quadros que
resmungavam e as
armaduras que rangiam e subiram a estreita escada de pedra,
até chegarem,
finalmente, à passagem onde se escondia a entrada secreta
para a
Grifinória, atrás do retrato a óleo de uma mulher muito
gorda, de vestido de seda
rosa.
— Senha? — perguntou ela quando os dois se aproximaram.
— Ããã... Ã murmurou Harry.
Eles não sabiam a senha do novo ano, ainda não tinham
encontrado o
monitor da Grifinória, mas o socorro chegou quase imediatamente; ouviram um
tropel de passos às costas e quando se viraram deram com
Hermione que corria
ao encontro deles.
— Aí estão vocês! Onde se meteram? Os boatos mais
ridículos... Alguém
disse que vocês foram expulsos por terem batido com um carro
voador.
— Bem, não fomos expulsos — garantiu-lhe Harry.
— Vocês não vão me dizer que realmente chegaram aqui voando?
—
disse Hermione, em tom quase tão severo quanto o da Profª.
McGonagall.
— Pode poupar o sermão — disse Rony impaciente — e nos dizer
qual é
a nova senha.
— É "maçarico” — respondeu Hermione impaciente —, mas
não é isto que
está em questão...
Suas palavras, porém, foram interrompidas, pois o retrato da
mulher gorda
se abriu em meio a uma repentina tempestade de aplausos.
Parecia que todos os
alunos da Grifinória ainda estavam acordados, espremidos na
sala comunal
redonda, trepados nas mesas fora de esquadro e nas poltronas
que afundavam,
esperando os dois chegarem.
Braços passaram pela abertura do retrato para puxar Harry e
Rony para
dentro, deixando Hermione subir depois e sozinha.
— Genial! — berrou Lino Jordan. — Um achado! Que entrada!
Aterrissar
um carro voador no salgueiro lutador, vão comentar isso
durante anos!
"Parabéns", disse um quintanista com que Harry
nunca falara antes;
alguém dava palmadinhas em suas costas como se ele tivesse
acabado de
ganhar uma maratona; Fred e
Jorge abriram caminho por entre os colegas
aglomerados e perguntaram ao mesmo tempo:
— Por que não viemos no carro, hein? Rony estava com a cara
vermelha
e sorria constrangido, mas Harry acabava de ver uma pessoa
que não parecia
nada feliz.
Percy era visível por cima das cabeças de uns alunos de
primeira série
animados, e parecia estar querendo se aproximar o suficiente
para começar a
ralhar com eles. Harry cutucou Rony nas costelas e fez sinal
em direção a Percy.
Rony entendeu na mesma hora.
— Temos que subir... Um pouco cansados — disse ele e os dois
começaram a abrir caminho em direção à porta do lado oposto
da sala, que levava
à escada circular e aos dormitórios.
— Noite — Harry falou por cima do ombro para Hermione, que
estava com
uma cara tão feia quanto Percy.
Os garotos conseguiram chegar ao outro lado da sala comunal,
ainda
recebendo palmadinhas nas costas, e alcançaram a paz das
escadas. Subiram a
escada correndo, direto para cima e, finalmente, chegaram à
porta do antigo
dormitório, que agora tinha um letreiro que dizia ALUNOS DE
SEGUNDA SÉRIE.
Entraram no quarto circular que já conheciam, com camas de
quatro colunas e
cortinas de veludo vermelho, e suas janelas altas e
estreitas. Seus malões tinham
sido trazidos até o quarto e colocados aos pés das camas.
Rony sorriu com ar de culpa para Harry.
— Sei que não devia ter curtido isso nem nada, mas...
A porta do dormitório se escancarou e por ela entraram os
outros
segundanistas da Grifinória, Simas Finnigan, Dino Thomas e
Neville Longbottom.
— Inacreditável!— exclamou Simas radiante.
— Legal — disse Dino.
— Um assombro! — acrescentou Neville atônito.
Harry não conseguiu se controlar e sorriu também.
CAPÍTULO SEIS
Gilderoy Lockhart
No dia seguinte,
porém, Harry mal conseguiu sorrir. As coisas começaram
a rolar morro abaixo desde o café da manha no Salão
Principal. As quatro mesas
compridas, cada uma de uma casa, estavam cobertas de
terrinas de mingau de
aveia, travessas de peixe defumado, montanhas de torradas e
pratos com ovos e
bacon, sob o céu encantado (hoje, toldado por nuvens cinzentas). Harry e Rony
sentaram-se à mesa da Grifinória ao lado de Hermione, que
tinha um exemplar de
Viagens com Vampiros, aberto, e apoiado numa jarra de leite. Havia uma certa
formalidade na maneira como ela deu "Bom dia", o
que informou a Harry que ela
continuava a desaprovar a maneira como os garotos tinham
chegado. Neville
Longbottom, por outro lado, cumprimentou-os animado. Neville
era um menino de
rosto redondo e dado a acidentes, com a pior memória que Harry já vira em
alguém.
— O correio deve chegar a qualquer momento, acho que vovó vai me
mandar umas coisas que esqueci.
Harry mal tinha começado a comer o mingau quando, a
confirmar o
comentário, ouviu-se um rumorejo de asas, no alto, e uma
centena de corujas
entrou, descrevendo círculos pelo salão e deixando cair
cartas e pacotes entre os
alunos que tagarelavam. Um grande embrulho disforme bateu na cabeça
de Neville, um segundo depois, alguma coisa grande e
cinzenta caiu na jarra de
Hermione, salpicando todo mundo com leite e penas.
— Errol!— exclamou Rony, puxando pelos pés a coruja molhada
para fora
da jarra. Errol caiu, desmaiada, em cima da mesa, as pernas
para cima e um
envelope vermelho e úmido no bico.
— Ah, não... —, exclamou Rony.
— Tudo bem, ele ainda está vivo — disse Hermione, cutucando
Errol
devagarinho com a ponta do dedo.
— Não é isso, é isto.
Rony estava apontando para o envelope vermelho. Parecia um
envelope
comum para Harry, mas Rony e Neville olharam para ele como
se fosse explodir.
— Que foi? — perguntou Harry.
— Ela... Ela me mandou um "berrador" — disse Rony
baixinho.
— É melhor abrir, Rony — sugeriu Neville com um sussurro
tímido. — Vai
ser pior se você não abrir. Minha avó um dia me mandou um e
eu não dei atenção
— ele engoliu em seco —, foi horrível.
Harry olhava dos rostos paralisados dos amigos para o
envelope
vermelho.
— Que é um berrador? — perguntou.
Mas toda a atenção de Rony estava fixa na carta, que
começara a
fumegar nos cantos.
— Abra — insistiu Neville. — Termina em poucos
minutos...
Rony estendeu a mão trêmula, tirou o envelope do bico de
Errol e abriu-o.
Neville enfiou os dedos nos ouvidos. Uma fração de segundo
depois,
Harry descobriu o porquê. Pensou por um instante que o envelope explodira;
um estrondo encheu o enorme salão, sacudindo a poeira do
teto.
“... ROUBAR O CARRO, EU NÃO TERIA ME
SURPREENDIDO SE O TIVESSEM EXPULSADO, ESPERE ATE
EU PÔR AS MÃOS EM VOCÊ, SUPONHO QUE NÃO PAROU
PARA PENSAR NO QUE SEU PAI E EU PASSAMOS QUANDO
VIMOS QUE O CARRO TINHA DESAPARECIDO...”
Os berros da Sra. Weasley, cem vezes mais altos do que de
costume,
fizeram os pratos e talheres se entrechocarem na mesa e
produziram um eco
ensurdecedor nas paredes de pedra. As pessoas por todo o
salão se viravam para
ver quem recebera o berrador, e Rony afundou tanto na
cadeira que só deixara
a testa vermelha visível.
“... A CARTA DE DUMBLEDORE Á NOITE PASSADA,
PENSEI QUE SEU PAI IA MORRER DE VERGONHA, NÃO O
EDUCAMOS PARA SE COMPORTAR ASSIM, VOCÊ E
HARRY PODIAM TER MORRIDO...”
Harry estava imaginando quando é que seu nome iria aparecer.
Fez muita
força para fingir que não estava escutando a voz que fazia
seus tímpanos
latejarem.
"... ABSOLUTAMENTE DESGOSTOSA, SEU PAI
ESTA ENFRENTANDO
UM INQUÉRITO NO TRABALHO, E É
TUDO CULPA SUA, E, SE VOCÊ SAIR UM DEDINHO DA LINHA,
VAMOS TRAZÊ-LO DIRETO PARA CASA.”
Seguiu-se um silêncio que chegou a ecoar. O envelope
vermelho, que
caíra das mãos de Rony, pegou fogo e encrespou-se em cinzas.
Harry e Rony
ficaram aturdidos, como se uma onda gigantesca tivesse
acabado de passar por
cima deles. Algumas pessoas riram e, aos poucos, a balbúrdia
da conversa
recomeçou.
Hermione fechou o Viagens com vampiros e olhou para o
cocuruto da
cabeça de Rony.
— Bem, não sei o que é que você esperava, Rony, mas você...
— Não me diga que mereci — retrucou Rony com rispidez.
Harry empurrou o prato de mingau. Suas entranhas queimavam
de
remorso. O Sr. Weasley estava enfrentando um inquérito no
trabalho. Depois de
tudo que o Sr. e a
Sra. Weasley tinham feito por ele durante o verão...
Mas não teve muito tempo para pensar nisso; a Profª. McGonagall vinha
passando pela mesa da Grifinória, distribuindo os horários
dos cursos. Harry
recebeu o dele e viu que a primeira aula era uma aula dupla
de Herbologia, com
os alunos da Lufa- Lufa.
Harry, Rony e Hermione deixaram o castelo juntos,
atravessaram a horta e
rumaram para as estufas, onde as plantas mágicas eram
cultivadas. Pelo menos o
berrador fizera uma coisa boa: Hermione parecia achar que
tinham sido
suficientemente castigados e voltara a ser absolutamente
simpática.
Ao se aproximarem das estufas viram o resto da classe em pé,
do lado de
fora, esperando a
Profª. Sprout. Harry,
Rony e Hermione tinham acabado de se
reunir à turma quando a professora surgiu caminhando pelo
gramado,
acompanhada de Gilderoy Lockhart. Ela trazia os braços carregados de
bandagens, e, com outro aperto de remorso, Harry viu o
salgueiro lutador ao
longe, com vários ramos em tipóias.
A Profª. Sprout era
uma bruxinha atarracada que usava um chapéu
remendado sobre os cabelos soltos; geralmente tinha uma grande quantidade de
terra nas roupas, e suas unhas teriam feito tia Petúnia
desmaiar. Gilderoy
Lockhart, ao contrario, estava imaculado em suas espetaculares vestes azul-turquesa,
os cabelos dourados brilhando sob um
chapéu também turquesa, com
galão dourado e perfeitamente assentado na cabeça.
— Ah, alô — cumprimentou ele, sorrindo para os alunos
reunidos. —
Acabei de mostrar à Profª. Sprout a maneira certa de cuidar
de um salgueiro
lutador! Mas não quero que vocês fiquem com a idéia de que
sou melhor do que
ela em Herbologia! Por acaso encontrei várias dessas plantas
exóticas nas minhas
viagens...
— Estufa três hoje, rapazes! — disse a Profª. Sprout, que
tinha um ar
visivelmente contrariado, bem diferente de sua habitual
expressão animada.
Houve um murmúrio de interesse. Até então, só tinham
estudado na
estufa número um — a estufa três guardava plantas muito mais
interessantes
e perigosas. A Profª. Sprout tirou uma chave enorme do cinto
e destrancou a
porta. Harry sentiu um cheiro de terra molhada e
fertilizante mesclados ao
perfume pesado de umas flores enormes, do tamanho de sombrinhas
que
pendiam do teto. Ia entrar em seguida a Rony e Hermione na
estufa quando
Lockhart estendeu a mão.
— Harry! Estou querendo dar uma palavra... A senhora não se
importa se
ele se atrasar uns minutinhos, não é, Profª. Sprout?
A julgar pela cara de desagrado da professora, ela se
importava sim, mas
Lockhart disse:
— É isso ai — e fechou a porta da estufa na cara dela.
— Harry — disse Lockhart, os dentões brancos faiscando ao
sol quando
ele
balançou a cabeça. — Harry, Harry, Harry.
Completamente estupefato, Harry ficou calado.
— Quando ouvi, bem, é claro que foi tudo minha culpa. Tive
vontade de
me chutar.
Harry não fazia idéia do que é que o professor estava
falando. Ia dizer isso
quando Lockhart acrescentou:
— Nunca fiquei tão chocado em minha vida. Chegar a Hogwarts num
carro voador! Bem, é
claro, entendi na mesma hora por que você fez isso.
Estava na cara. Harry, Harry, Harry.
Era incrível como é que ele conseguia mostrar cada um
daqueles dentes
brilhantes até quando não estava falando.
— Teve uma provinha de publicidade, não foi? — disse
Lockhart. — Ficou
mordido. Esteve na primeira página comigo e não pôde esperar
para repetir o
feito.
— Ah, não, Professor, sabe...
— Harry, Harry, Harry — disse Lockhart, segurando-o pelo
ombro. — Eu
compreendo. É natural
querer mais depois de provar uma vez, e eu me culpo por
ter-lhe dado a oportunidade, porque a coisa não podia deixar
de lhe subir à
cabeça, mas olhe aqui, rapaz, você não pode começar a voar em carros para
tentar chamar atenção para
a sua pessoa. É bom se acalmar, está bem? Tem
muito tempo para isso quando for mais velho. E, é, sei o que
está pensando!
"Tudo bem para ele, já é um bruxo internacionalmente
conhecido!" Mas quando eu
tinha doze anos, era um João-ninguém como você é agora.
Diria até que era mais
João-ninguém! Quero dizer, algumas pessoas já ouviram falar
de você, não é
mesmo? Todo aquele episódio com
Ele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado! — Ele
olhou para a cicatriz em forma de raio na testa de Harry. —
Eu sei, eu sei, não é
tão bom quanto ganhar o Prêmio do Sorriso mais Atraente do
Semanário dos
Bruxos cinco vezes seguidas, como eu, mas é um começo,
Harry, é um começo.
Ele deu uma piscadela cordial a Harry e foi-se embora a
passos largos.
Harry continuou aturdido por alguns segundos, depois,
lembrando-se de que devia
estar na estufa, abriu a porta e entrou sem chamar atenção.
A Profª. Sprout estava parada atrás de uma mesa de cavalete
no centro
da estufa. Havia uns vinte pares de abafadores de ouvidos de
cores diferentes
arrumados sobre a mesa. Quando Harry tomou seu lugar entre
Rony e Hermione,
a professora disse:
— Vamos reenvasar mandrágoras hoje. Agora, quem é que sabe
me dizer
as propriedades da mandrágora?
Ninguém se surpreendeu quando a mão de Hermione foi a
primeira a se
levantar.
— A mandrágora é um tônico reconstituinte muito forte —
disse Hermione,
parecendo, como sempre, que engolira o livro-texto. — É
usada para trazer de
volta as pessoas que foram transformadas ou foram
enfeitiçadas no seu estado
natural.
— Excelente. Dez pontos
para a Grifinória — disse a Profº. Sprout. — A
mandrágora é parte essencial da maioria dos antídotos. Mas,
é também perigosa.
Quem sabe me dizer o porquê?
A mão de Hermione errou por pouco os óculos de Harry quando
ela a
levantou mais uma vez.
— O grito da mandrágora é fatal para quem o ouve — disse a garota
prontamente.
— Exatamente. Mais dez pontos. Agora as mandrágoras que
temos aqui
ainda são muito novinhas.
Ela apontou para uma fileira de tabuleiros fundos ao falar,
e todos se
aproximaram para ver melhor. Umas cem moitinhas repolhudas,
verde
arroxeadas, cresciam em fileiras nos tabuleiros. Não pareciam ter nada de mais
para Harry, que não fazia a menor idéia do que Hermione
quisera dizer com o
"grito" da mandrágora.
— Agora apanhem um par de abafadores de ouvidos — mandou a
professora.
Os alunos correram para a mesa para tentar apanhar um par
que não
fosse peludo nem cor-de-rosa.
— Quando eu mandar vocês colocarem os abafadores,
certifiquem-se de
que suas orelhas ficaram completamente cobertas — disse ela.
— Quando for
seguro remover os abafadores eu erguerei o polegar para
vocês. Certo...
Coloquem os abafadores.
Harry ajustou os abafadores nos ouvidos. Eles vedaram
completamente o
som. A Profª. Sprout colocou o seu par peludo e cor-de-rosa
nas orelhas, enrolou
as mangas das vestes, agarrou uma moitinha de mandrágora com
firmeza e
puxou-a com força.
Harry deixou escapar uma exclamação de surpresa que ninguém
ouviu.
Em vez de raízes, um bebezinho extremamente feio saiu da
terra. As folhas
cresciam diretamente de sua cabeça. Ele tinha a pele verde-clara malhada e
era visível que berrava a plenos pulmões.
A professora tirou um vaso de plantas grande de sob a bancada e
mergulhou nele a mandrágora, cobrindo-a com o composto escuro e úmido até
ficarem apenas as folhas visíveis. Depois, limpou as mãos,
fez sinal com o polegar
para os alunos e retirou os abafadores dos ouvidos.
— As nossas mandrágoras são apenas miudinhas, por isso seus
gritos
ainda não dão para matar — disse ela calmamente como se não
tivesse feito nada
mais excitante do que regar uma begônia. — Mas, elas
deixarão vocês
inconscientes por varias horas, e como tenho certeza de que
nenhum de vocês
quer perder o primeiro dia na escola, certifiquem-se de que
seus abafadores estão
no lugar antes de começarem a trabalhar. Chamarei sua
atenção quando estiver
na hora da saída.
— Quatro para cada tabuleiro, há um bom estoque de vasos aqui, o
composto está nos sacos ali adiante, e tenham cuidado com
aquela planta de
tentáculos venenosos.
Está criando dentes.
Ela deu uma palmada enérgica em uma planta vermelha e espinhosa ao
falar, fazendo-a recolher os longos tentáculos que avançavam
sorrateiramente
pelo seu ombro.
Harry, Rony e Hermione dividiram o tabuleiro com um garoto
de cabelos
cacheados da Lufa-Lufa que Harry conhecia de vista, mas com
quem nunca
falara.
— Justino Finch-Fletchley — apresentou-se ele animado,
apertando a
mão de Harry. — Eu sei quem você é, claro, o famoso Harry
Potter.. E você é
Hermione Granger, sempre a primeira em tudo — (Hermione deu um grande
sorriso quando o garoto também apertou sua mão) —, e Rony Weasley. O
carro voador era seu, não era?
Rony não sorriu. O berrador obviamente continuava em seus
pensamentos.
— Aquele Lockhart é o máximo, não acha? — disse Justino,
feliz, quando
começaram a encher os vasos de planta com fertilizante de bosta de dragão. —
Um cara super corajoso. Você leu os livros dele? Eu teria morrido de medo se
tivesse sido acuado em uma cabine telefônica por um
lobisomem, mas ele
continuou na dele e, zás, simplesmente fantástico. Eu estava inscrito em Eton,
sabe. Nem sei dizer como estou contente de, em vez disso,
ter vindo para cá.
Claro, minha mãe ficou um pouco desapontada, mas desde que a
fiz ler os livros
de Lockhart acho que começou a perceber como será útil ter
na família alguém
formado em magia...”
Depois disso não houve muito o que conversar. Tinham tornado
a colocar
os abafadores e precisavam se concentrar nas mandrágoras. A
Profª. Sprout
fizera a tarefa parecer extremamente fácil, mas não era. As mandrágoras não
gostavam de sair da terra, mas tampouco pareciam querer
voltar para ela.
Contorciam-se, chutavam, sacudiam os pequenos punhos afiados
e
arreganhavam os dentes; Harry gastou dez minutos inteiros tentando espremer
uma planta particularmente gorda dentro de um vaso.
Lá pelo fim da aula, Harry, como todos os outros, estava
suado, dolorido e
coberto de terra. Eles voltaram ao castelo para se lavar
rapidamente, e então os
alunos da Grifinória correram para a aula de Transformaçoes.
As aulas da Profª. McGonagall eram sempre trabalhosas, mas a de hoje
estava particularmente difícil. Tudo que Harry aprendera no ano anterior parecia
ter-se esvaído de sua cabeça durante o verão. Devia
transformar um besouro em
um botão, mas a única coisa que conseguiu foi forçar o besouro
a fazer muito
exercício, pois o inseto corria por toda a superfície da carteira para fugir de sua
varinha.
Rony estava enfrentando um problema muito pior. Tinha
remendado a
varinha com um pouco de fita adesiva que pedira emprestada,
mas a varinha
parecia danificada para sempre. Não parava de estalar e
faiscar nas horas mais
estranhas, e cada vez que Rony tentava transformar o besouro
ela o envolvia em
uma densa fumaça cinzenta que cheirava a ovos podres.
Acidentalmente ele esmagou o seu besouro com o cotovelo e
teve que
pedir um novo. A Profª. McGonagall não ficou nada
satisfeita.
Foi um alívio para Harry ouvir a sineta para o almoço. Seu
cérebro parecia
ter virado uma esponja espremida. Todos saíram da sala
exceto ele e Rony,
que, furioso, dava golpes de varinha na carteira.
— Coisa, burra, inútil.
— Escreva para casa pedindo uma nova — sugeriu Harry quando
a
varinha produziu uma saraivada de tiros feito um rojão.
— Ah, sim, e recebo outro berrador em resposta — disse Rony
enfiando
na mochila a varinha, que agora sibilava. — "A culpa é
sua se sua varinha
partiu...”
Os três amigos desceram para o refeitório, onde o humor de
Rony não
melhorou ao ver a coleção de botões perfeitos que Hermione
mostrava ter feito na
aula de Transformações.
— Que vamos ter hoje à tarde? — perguntou Harry, mudando de
assunto
depressa.
— Defesa contra as Artes das Trevas — respondeu Hermione na
mesma
hora.
— Por que — perguntou Rony, apanhando o horário dela — você
sublinhou com coraçõezinhos as aulas de Lockhart?
Hermione puxou o horário da mão de Rony, corando loucamente.
Quando terminaram o almoço os três saíram para o pátio
nublado.
Hermione se sentou em um degrau de pedra e tornou a enfiar o nariz
em Viagem com Vampiro.
Harry e Rony ficaram discutindo Quadribol durante vários
minutos até
Harry perceber que estava sendo atentamente vigiado. Ao
erguer os olhos, viu
que o garoto miudinho de cabelos louro-cinza que ele vira
experimentando o
Chapéu Seletor na véspera o encarava como que paralisado. Estava agarrado a
um objeto que parecia uma máquina fotográfica de trouxas e,
no momento em que
Harry olhou para ele, ficou escarlate.
— Tudo bem, Harry? Sou... Colin Creevey — disse o menino sem
fôlego,
adiantando-se hesitante. — Sou da Grifinória também. Você
acha que tem algum
problema se... Posso tirar uma foto? — disse, erguendo a
máquina, esperançoso.
— Uma foto? — repetiu Harry sem entender.
— Para provar que conheci você — disse Colin Creevey
ansioso,
aproximando-se mais. — Sei tudo sobre você. Todo mundo me
contou. Como
foi que você sobreviveu quando Você-Sabe-Quem tentou matá-lo
e como foi que
ele desapareceu e tudo o mais, e como você ainda conserva a
cicatriz em forma
de raio na testa — seus olhos esquadrinharam a raiz dos
cabelos de Harry —, e
um garoto no meu dormitório disse que se eu revelar o filme
na poção correta, as
fotos vão se mexer — Colin inspirou profundamente,
estremecendo de excitação,
e disse:
— Isto aqui é fantástico, não acha? Eu não sabia que as
coisas estranhas
que eu fazia eram magia até receber uma carta de Hogwarts. Meu pai é leiteiro,
ele também não conseguia acreditar. Então estou tirando um
montão de fotos para
levar para ele. E seria bem bom se tivesse a sua — o garoto
olhou para Harry
como se implorasse.
— Quem sabe o seu amigo podia tirar, e eu podia ficar do seu
lado? E
depois você podia autografar a foto?
— Autografar a foto? Você está distribuindo fotos
autografadas, Potter?
A voz de Draco Malfoy, alta e desdenhosa, ecoou pelo pátio.
Ele parara
logo atrás de Colin, ladeado, como sempre que estava em
Hogwarts, pelos
capangas grandalhões, Crabbe e Goyle.
— Todo mundo em fila! — gritou Malfoy para os outros alunos.
— Harry
Potter está distribuindo fotos autografadas!
— Não, não estou não — disse Harry com raiva, cerrando os
punhos. —
Cale a boca, Malfoy.
— Você está é com inveja — ouviu-se a voz fina de Colin,
cujo corpo
inteiro era da grossura do pescoço de Crabbe.
— Inveja? — disse Malfoy, que não precisava mais gritar:
metade do pátio
estava escutando. — De quê? Não quero uma cicatriz nojenta na minha testa,
muito obrigado. Por mim, não acho que ter a cabeça aberta
faz ninguém especial.
Crabbe e Goyle davam risadinhas idiotas.
— Vá comer lesmas, Malfoy — disse Rony furioso. Crabbe parou
de rir e
começou a esfregar os nós dos dedos de maneira ameaçadora.
— Cuidado, Weasley — caçoou Malfoy. — Você não vai querer
começar
nenhuma confusão ou sua mamãe vai aparecer aqui para tirá-lo
da escola. — Ele
imitou a voz aguda e penetrante: — "Se você sair um
dedinho da linha...”
Um grupo de quintanistas da Sonserina que estava próximo deu
gargalhadas ao ouvir isso.
— Weasley gostaria de ganhar uma foto autografada, Potter. —
riu-se
Malfoy. — Valeria mais do que a casa inteira da família
dele...
Rony brandiu a varinha emendada, mas Hermione fechou o
Viagens com
Vampiros com um estalo e cochichou:
— Cuidado!
— Que está acontecendo, que está acontecendo? — Gilderoy Lockhart
vinha em passos largos em direção à aglomeração, suas vestes
turquesa
rodopiando para trás.
— Quem é que está distribuindo fotos autografadas?
Harry começou a falar, mas foi interrompido por Lockhart que
passou um
braço pelos seus ombros e trovejou jovial:
— Não devia ter perguntado! Nos encontramos outra vez,
Harry!
Preso contra o corpo de Lockhart e ardendo de humilhação, Harry viu
Malfoy sair de fininho, rindo-se, para junto dos outros
colegas.
— Vamos então, Sr. Creevey — disse Lockhart, sorrindo para o
garoto. —
Uma foto dupla, nada melhor, e nós dois podemos autografá-la
para o senhor.
Colin ajeitou a máquina e tirou a foto na hora em que a sineta tocava às
costas do grupo, sinalizando o início das aulas da tarde.
— Está na hora, vamos andando vocês aí — gritou Lockhart
para os
alunos e voltou ao castelo com Harry, que teve vontade de conhecer um bom
feitiço para desaparecer, ainda preso ao professor.
— Uma palavra para o bom entendedor, Harry — disse Lockhart
paternalmente quando entravam no castelo por uma porta
lateral. — Dei cobertura
a você lá com o jovem Creevey, se ele estivesse me fotografando, também, os
seus colegas não iriam pensar que você está se dando ares...
Surdo aos murmúrios hesitantes de Harry, Lockhart arrebatou-o por um
corredor ladeado por estudantes de olhos arregalados e subiu
uma escada.
— Devo dizer que distribuir fotos autografadas nessa altura
de
sua carreira não é sensato, parece meio presunçoso, Harry,
para ser franco.
Haverá um dia em que, como eu, você vai precisar ter uma
pilha de fotos à mão
onde quer que vá, mas — ele deu uma risadinha — acho que
você ainda não
chegou lá.
Ao chegarem à sala de aula de Lockhart ele finalmente soltou
Harry. O
garoto endireitou as vestes e se dirigiu a uma carteira bem no fundo da sala,
onde se ocupou em empilhar os sete livros de Lockhart diante
dele, de modo que
pudesse evitar olhar para o autor em carne e osso.
O resto da classe entrou fazendo barulho, e Rony e Hermione se
sentaram um de cada lado de Harry.
— Você podia ter fritado um ovo na cara — comentou Rony.
— É melhor rezar para Creevey não conhecer a Gina, ou os
dois vão
começar um fã-clube do Harry Potter.
— Cale a boca — disse Harry ríspido. — A última coisa que
precisava era
que Lockhart ouvisse a frase "fã-clube do Harry
Potter".
Quando a classe inteira se sentou, Lockhart pigarreou alto e fez-se
silêncio. Ele esticou o braço, apanhou o exemplar de Viagens com Trasgos de
Neville Longbottom e ergueu-o para mostrar a própria foto na capa, piscando
o olho.
— Eu — disse apontando a foto e piscando também. — Gilderoy
Lockhart,
Ordem de Merlin, Terceira Classe, Membro Honorário da Liga
de Defesa contra as
Forças do Mal e vencedor do Prêmio Sorriso mais Atraente da
revista Semanário
dos Bruxos cinco vezes seguidas, mas não falo disso. Não me livrei do espírito
agourento de Bandon sorrindo para ela.
Ficou esperando que sorrissem; alguns poucos deram um
sorrisinho
amarelo.
— Vejo que todos compraram a coleção completa dos meus
livros, muito
bem. Pensei em começarmos hoje com um pequeno teste. Nada para se
preocuparem, só quero verificar se vocês leram os livros com
atenção, e o quanto
assimilaram...
Depois de distribuir os testes ele voltou à frente da classe
e falou:
— Vocês têm trinta minutos... Começar, agora!
Harry olhou para o teste e leu:
1. Qual é a cor favorita de Gilderoy Lockhart?
2. Qual é a ambição secreta de Lockhart?
3. Qual é na sua opinião a maior realização de Gilderoy
Lockhart até o momento?
E as perguntas continuavam, ocupando três páginas, até a
última:
54. Quando é o aniversário de Gilderoy Lockhart e qual
seria o presente ideal
para ele?
Meia hora depois, Lockhart recolheu os testes e folheou-os
diante da
classe.
— Tsk, tsk, quase ninguém se lembrou que a minha cor
favorita é lilás.
Digo isto no Um ano com o Ieti. E alguns de vocês precisam
ler Passeios com
Lobisomens com mais atenção, afirmo claramente no capítulo
doze que o
presente de aniversário ideal para mim seria a harmonia
entre os povos mágicos e
não-mágicos, embora eu não recuse um garrafão do Velho
Uísque de Fogo
Ogden!
E deu outra piscadela travessa para os alunos. Rony fitava
Lockhart com
uma expressão de incredulidade no rosto; Simas Finnigan e
Dino Thomas, que
estavam sentados à frente, sacudiam-se de riso silencioso. Hermione, por outro
lado, escutava Lockhart embevecida e atenta e se assustou
quando o ouviu
mencionar seu nome.
— Mas a Srta. Hermione Granger sabia que a minha ambição
secreta era
livrar o mundo do mal e comercializar a minha própria linha
de poções para os
cabelos, boa menina! Na realidade — ele virou o teste — ela
acertou tudo! Onde
está a Srta. Hermione Granger?
Hermione levantou a mão trêmula.
— Excelente! — disse o sorridente Lockhart. — Excelente
mesmo! Dez
pontos para a Grifinória! E agora, ao trabalho...
Virou-se para a mesa e depositou nela uma grande gaiola
coberta.
— Agora, fiquem prevenidos! É meu dever ensiná-los a se
defender contra
a pior criatura que se conhece no mundo da magia! Vocês
podem estar diante dos
seus maiores medos aqui nesta sala. Saibam que nenhum mal
vai lhes acontecer
enquanto eu estiver aqui. Só peço que fiquem calmos.
Sem querer, Harry se curvou para um lado da pilha de livros que
erguera para dar uma olhada melhor na gaiola. Lockhart colocou a mão na
cobertura.
Dino e Simas pararam de rir agora. Neville se afundou em sua
carteira na
primeira fila.
— Peço que não gritem — recomendou Lockhart em voz baixa. —
Pode
provocá-los.
E a classe inteira prendeu a respiração. Lockhart puxou a
cobertura com
um gesto largo.
— Sim, senhores — disse teatralmente. — Diabretes da
Cornualia recém
capturados.
Simas Finnigan não conseguiu se controlar. Deixou escapar
uma risada
pelo nariz que nem mesmo Lockhart poderia confundir com um
grito de terror.
— Que foi? — Ele sorriu para Simas.
— Bem, eles não são... Não são muito... Perigosos, são? —
engasgou-se
Simas.
— Não tenha tanta certeza assim! — disse Lockhart, sacudindo
um dedo,
aborrecido, para Simas. — Esses bandidinhos podem ser
diabolicamente astutos!
Os diabretes eram azul-elétrico e tinham uns vinte
centímetros de altura,
os rostos finos e as vozes tão agudas que pareciam um bando de periquitos
fazendo algazarra. No instante em que a cobertura foi
retirada, eles começaram a
falar e a voar de maneira rápida e excitada, a sacudir as
grades e a fazer caras
esquisitas para as pessoas mais próximas.
— Certo, então — disse Lockhart em voz alta. — Vamos ver o
que vocês
acham deles! — E abriu a gaiola.
Foi um pandemônio. Os diabretes disparavam em todas as
direções como
foguetes.
Dois deles agarraram Neville pelas orelhas e o ergueram no ar, Vários
outros voaram direto pelas janelas fazendo cair uma chuva de
estilhaços de vidro
no canteiro. Os demais se puseram a destruir a sala de aula
com mais eficiência
do que um rinoceronte desembestado. Agarraram tinteiros e
salpicaram a sala
de tinta, picaram livros e papéis, arrancaram quadros das
paredes, viraram a cesta
de lixo, pegaram as mochilas e livros e os atiraram contra
as vidraças quebradas;
em poucos minutos, metade da classe estava abrigada embaixo
das carteiras e,
Neville, pendurado no teto pelo lustre de ferro.
— Vamos, vamos, reúnam eles, reúnam eles, são apenas
diabretes —
gritou Lockhart.
Ele enrolou as mangas, brandiu a varinha e berrou:
— Peskipiksi ksi pesternomi!
As palavras não produziam efeito algum; um dos diabretes se
apoderou
da varinha e atirou-a também pela janela.
Lockhart engoliu em seco e mergulhou embaixo da mesa,
escapando por
pouco de ser esmagado por Neville, que despencou um segundo
depois quando o
lustre cedeu.
A sineta tocou, e todos desembestaram para a saída. Na calma
relativa
que se seguiu, Lockhart levantou-se, viu Harry, Rony e
Hermione, que estavam
quase na porta, e disse:
— Bem, vou pedir a vocês que enfiem rapidamente os restantes
de volta
na gaiola. — E, passando pelos três, fechou a porta
depressa.
— Dá para acreditar? — rugiu Rony quando um dos diabretes
restantes
lhe deu uma dolorosa mordida na orelha.
— Ele só quer nos dar uma experiência direta — disse
Hermione,
imobilizando dois diabretes ao mesmo tempo com um inventivo
Feitiço Congelante
e enfiando-os de volta na gaiola.
— Direta? — disse Harry, que estava tentando agarrar um
diabrete que
dançava fora do seu alcance dando-lhe língua. — Mione, ele
não tinha a
menor idéia do que estava fazendo...
— Bobagem. Você leu os livros dele, vê só todas as coisas
incríveis que
ele fez...
— Que ele diz que fez — murmurou Rony.
CAPÍTULO SETE
Sangue Ruim
Harry dedicou muito tempo, nos dias seguintes, a desaparecer de vista
sempre que Gilderoy Lockhart aparecia andando por um
corredor. Mais difícil foi
evitar Colin Creevey, que parecia ter decorado o seu
horário. Pelo visto nada dava
maior alegria a Colin do que dizer: "Tudo bem,
Harry?" seis ou sete vezes por dia
e ouvir: "Oi, CoLin", em resposta, por maior
irritação que Harry demonstrasse ao
dizer isso.
Edwiges continuava aborrecida com Harry por causa da desastrada
viagem de carro e a varinha de Rony continuava a, funcionar
mal, superando os
próprios limites na sexta-feira na aula de Feitiços, ao se
atirar da mão de Rony e
atingir o Profº. Flitwick
bem no meio dos olhos, produzindo um grande furúnculo
verde e Latejante no lugar em que bateu. Assim entre uma coisa e outra, Harry
ficou muito contente ao ver chegar o fim de semana. Ele,
Rony e Mione estavam
planejando visitar Hagrid no sábado de manhã. Harry, porém, foi acordado muito
antes da hora que pretendera pelas sacudidas de Olívio Wood,
capitão do time de
Quadribol da Grifinória.
— Que foi? — perguntou Harry tonto de sono.
— Prática de Quadribol! — disse Wood. — Vamos!
Harry espiou pela janela apertando os olhos. Havia uma névoa
rala
cobrindo o céu rosa e dourado. Agora que acordara, ele
não conseguia entender
como podia estar dormindo com a algazarra que os passarinhos
faziam.
— Olívio — disse ele com a voz rouca. — O dia ainda está
amanhecendo.
— Exato — respondeu Wood. Ele era um sextanista alto e forte
e, naquele
instante, seus olhos brilhavam de fanático entusiasmo. — Faz
parte do
nosso novo programa de treinamento. Ande, pegue a vassoura e
vamos — disse
Wood animado. — Nenhum dos times começou a treinar ainda;
vamos ser os
primeiros a dar a partida este ano...
Aos bocejos e tremores, Harry saiu da cama e tentou
encontrar as vestes
de Quadribol.
— Muito bem — disse Wood. — Te encontro no campo daqui a
quinze
minutos.
Depois de procurar o uniforme vermelho do time e vestir uma
capa para se
aquecer, Harry rabiscou um bilhete para Rony explicando onde fora e desceu a
escada em caracol até a sala comunal, a Nimbus 2000 ao
ombro. Acabara de
chegar ao buraco do retrato quando ouviu um estardalhaço às
suas costas, e
Colin Creevey
apareceu correndo escada abaixo,
a máquina fotográfica
balançando feito louca ao pescoço e alguma coisa segura na
mão.
— Ouvi alguém dizer o seu nome na escada, Harry! Olhe só o
que tenho
aqui! Mandei revelar, queria lhe mostrar...
Harry examinou confuso a foto que Colin sacudia debaixo do
seu nariz.
Numa foto preto-e-branco, um Lockhart em movimento puxava
com força
um braço que Harry reconhecia como seu. Ficou satisfeito ao
ver que o seu eu
fotográfico resistia bravamente e recusava a se deixar
arrastar para dentro da foto.
Enquanto Harry
observava, Lockhart desistiu e se
largou, ofegante, contra a
margem branca da foto.
— Você autografa? — perguntou Colin, ansioso.
— Não — disse Harry sem rodeios, olhando para os lados para
verificar se
a sala estava realmente deserta. — Desculpe, Colin, estou
com pressa, prática de
Quadribol...
E atravessou o buraco do retrato.
— Uau! Espere por mim! Nunca — vi um jogo de Quadribol
antes!
Colin subiu pelo buraco atrás de Harry.
— Vai ser bem chato — disse Harry depressa, mas o garoto não
lhe deu
atenção, seu rosto iluminava-se de excitação.
— Você foi o jogador da casa mais novo em cem anos, não foi, Harry?
Não foi? — perguntou Collin, caminhando ao lado dele. — Você
deve ser genial.
Eu nunca voei. É fácil? Esta vassoura é sua? É a melhor que
existe?
Harry não sabia como se livrar do coleguinha. Era como ter
uma sombra
extremamente tagarela.
— Eu não entendo bem de Quadribol — disse Colin sem fôlego.
— É
verdade que tem quatro bolas? E duas ficam voando em volta
dos jogadores
tentando tirá-los de cima das vassouras?
— É — disse Harry a contragosto, conformado em explicar as
regras
complicadas do Quadribol. — Chamam-se balaços. Há dois batedores em cada
time armados de bastões para rebater os balaços para longe
do seu time. Fred e
Jorge Weasley batem pela Grifinória.
— E para que servem as outras bolas? — perguntou Colin,
derrapando
dois degraus porque olhava boquiaberto para Harry.
— Bem, a goles, a bola vermelha meio grande, é a que faz os
gols. Três
apanhadores em cada time atiram a goles um para o outro e
tentam metê-La entre
as balizas na extremidade do campo, são três postes compridos
com aros na
ponta.
— E a quarta bola...
— ... É o pomo de ouro — disse Harry —, e é muito pequena,
muito veloz
e difícil de agarrar. Mas é isso que o apanhador tem que
fazer, porque um jogo de
Quadribol não termina até o pomo ser capturado. E o apanhador que agarra o
pomo para o time ganha cento e cinqüenta pontos a mais.
— E você é o apanhador da Grifinória, não é? — perguntou
Colin cheio de
admiração e respeito.
— Sou — respondeu Harry enquanto deixavam o castelo e
começavam a
atravessar o gramado encharcado de orvalho. — E tem o
goleiro também. Ele
guarda as balizas. É isso, em resumo.
Mas Colin não parou de interrogar Harry o tempo todo, desde
o gramado
ondulante até o campo de Quadribol, e Harry só conseguiu se
desvencilhar dele
quando chegou aos vestiários; Colin ainda gritou com sua voz
fina quando ele se
afastava.
— Vou pegar um bom lugar, Harry! — e correu para as
arquibancadas.
Os outros jogadores do time da Grifinória já estavam no
vestiário. Wood
era o único que parecia realmente acordado. Fred e Jorge
estavam sentados, os
olhos inchados e os cabelos despenteados, ao lado de uma
quartanista,
Alicia Spinnet, que parecia estar cabeceando contra a parede em que se
encostara. As outras artilheiras, suas companheiras, Katie
Bell e Angelina
Johnson, bocejavam lado a lado de frente para eles.
— Até que enfim, Harry, por que demorou? — perguntou Wood
eficiente.
— Agora, eu queria ter uma conversinha com vocês antes de
irmos para o
campo, porque passei o verão imaginando um programa de treinamento
completamente novo, que acho que vai fazer toda a
diferença...
Wood ergueu um grande diagrama de um campo de Quadribol, em
que
estavam desenhadas muitas linhas, setas e cruzes em tinta de cores diversas.
Depois, puxou a varinha, deu uma batidinha no desenho, e as
flechas começaram
a se deslocar pelo diagrama como lagartas. Quando Wood deslanchou um
discurso sobre as novas táticas, a cabeça de Fred Weasley
despencou no ombro
de Alicia Spinnet e ele começou a roncar.
O primeiro quadro levou quase vinte minutos para ser explicado, mas
havia outro por baixo daquele, e um terceiro por baixo do
segundo. Harry
mergulhou num estupor durante a falação interminável de
Wood.
— Então — disse Wood, finalmente, arrancando Harry de uma
irrealizável
fantasia sobre o que estaria comendo no café da manhã, naquele instante,
no castelo. — Ficou claro? Alguma pergunta?
— Tenho uma pergunta, Olivio — disse Jorge, que acordara
assustado. —
Você não podia ter explicado tudo isso ontem quando a gente
estava acordado?
Wood não gostou.
— Agora, ouçam aqui, vocês todos — disse, amarrando a cara. — Nós
devíamos ter ganho a taça de Quadribol no ano passado.
Somos sem favor nenhum o melhor time da escola. Mas, infelizmente,
devido a circunstâncias fora do nosso controle...
Harry se mexeu cheio de culpa no banco. Estivera
inconsciente na ala
hospitalar no último jogo do ano anterior, o que significava
que a Grifinória
tivera um jogador a menos e sofrera sua pior derrota em
trezentos anos.
Wood esperou um instante para recuperar o próprio controle.
A última
derrota, visivelmente, continuava a torturá-lo.
— Então, este ano, vamos treinar mais do que jamais
treinamos... Muito
bem, vamos colocar as nossas teorias em prática! — gritou Wood, agarrando a
vassoura e saindo do vestiário. As pernas dormentes e, ainda
bocejando, o time o
acompanhou.
Tinham passado tanto tempo no vestiário que o sol já estava
todo de fora,
embora ainda se vissem restos de névoa sobre o gramado do
estádio. Quando
Harry entrou em campo, viu Rony e Mione sentados nas
arquibancadas.
— Vocês ainda não acabaram? — gritou Rony surpreso.
— Nem começamos — respondeu Harry, olhando com inveja a torrada
com geléia que Rony e Mione tinham trazido do Salão. — Wood
esteve ensinando
novas jogadas ao time.
Ele montou na vassoura, meteu o pé no chão para dar impulso e saiu
voando, O ar frio da manhã bateu em seu rosto, acordando-o
com muito mais
eficiência do que a longa conversa de Wood. Era uma sensação
maravilhosa estar
de volta a um campo de Quadribol. Harry sobrevoou o estádio
a toda velocidade,
apostando corrida com Fred e Jorge.
— Que clique-clique esquisito é esse? — gritou Fred enquanto
faziam
uma volta rápida.
Harry olhou para as arquibancadas. Colin estava sentado em
um dos
lugares mais altos, a máquina fotográfica levantada, tirando
fotos seguidas, o som
estranhamente ampliado no estádio deserto.
— Olhe para cá, Harry! Para cá! — gritava se esganiçando.
— Quem é aquele? — perguntou Fred.
— Não faço a menor idéia — mentiu Harry dando uma bombeada
na
vassoura que o levou o mais longe possível de Colin.
— Que é que está acontecendo? — perguntou Wood,
franzindo a testa,
enquanto cortava o ar em direção a eles. — Por que aquele
aluninho de primeiro
ano está tirando fotos? Não gosto disto. Pode ser um espião
da Sonserina,
tentando descobrir o nosso novo programa de treinamento.
— Ele é da Grifinória — informou Harry depressa.
— E o pessoal da Sonserina não precisa de espião, Olivio —
acrescentou
Jorge.
— Por que você está dizendo isso? — perguntou Wood irritado.
— Porque eles vieram pessoalmente — respondeu Jorge
apontando.
Vários alunos de vestes verdes estavam entrando em campo, de
vassouras na mão.
— Eu não acredito! — sibilou Wood indignado. — Reservei o
campo para
hoje!
— Vamos cuidar disso.
Wood mergulhou até o chão, aterrissando em sua raiva, com
muito mais
força do que pretendia, e cambaleou um pouco ao desmontar.
Harry, Fred e Jorge
o acompanharam.
— Flint! — berrou Wood para o capitão da Sonserina. — Está
na hora do
nosso treino! Levantamos especialmente para isso!
— Pode ir dando o fora!
Marcos Flint era ainda mais corpulento do que Hood. Tinha uma
expressão de trasgo astucioso quando respondeu:
— Tem bastante espaço para todos nós, Wood.
Angelina, Alicia e Katie tinham se aproximado também. Não havia
mulheres no time da Sonserina, para ficarem, ombro a ombro,
com ar de desdém,
encarando os jogadores da Grifinória.
— Mas eu reservei o campo! — disse Wood, praticamente
cuspindo de
raiva. — Eu reservei!
— Ah, mas tenho um papel aqui assinado pelo Profº. Snape.
"Eu, Profº. Snape, dei ao time da Sonserina permissão
para praticar hoje
no campo de Quadribol, face á necessidade de treinarem o seu
novo apanhador.”
— Vocês têm um novo apanhador? — perguntou Wood, distraído.
—
Onde?
E por trás dos seis jogadores grandalhões surgiu diante
deles um sétimo,
menor, com um sorriso que se irradiava por todo o rosto
pálido e fino. Era Draco
Malfoy!
— Você não é o filho do Lúcio Malfoy? — perguntou Fred,
olhando Draco
com ar de desagrado.
— Engraçado você mencionar o pai do Draco — disse Flint
enquanto o
time inteiro da Sonserina sorria com mais prazer.
— Deixe eu mostrar a vocês o presente generoso que ele deu
ao time da
Sonserina.
Os sete mostraram as vassouras. Sete cabos polidos, novos em
folha, e
sete conjuntos de letras douradas, formando as palavras
Nimbus 2001, reluziam
sob os narizes dos jogadores da Grifinória, ao sol do
amanhecer.
— Último modelo. Saiu no mês passado — disse Flint
displicente, tirando
um grão de poeira da ponta de sua vassoura com um peteleco.
— Acho que
bate de longe a série antiga das 2000. Quanto às velhas
Cleansweep — e sorriu
de modo desagradável para Fred e Jorge, que seguravam esse
tipo de vassoura
—, varram o placar com elas.
Nenhum dos jogadores da Grifmória conseguiu pensar em nada
para dizer
naquele instante. Draco exibia um sorriso tão grande que
seus olhos frios estavam
reduzidos a fendas.
— Ah, olha ali — disse Flint. — Uma invasão de campo.
Rony e Mione vinham atravessando o gramado para ver o que
estava
acontecendo.
— Que é que está havendo? — perguntou Rony a Harry. — Por
que vocês
não estão jogando? E que é que ele está fazendo aqui?
Olhava para Draco, reparando nas vestes de Quadribol com as
cores da
Sonserina que o garoto usava.
— Sou o novo apanhador da Sonserina, Weasley — disse Draco,
presunçoso. — O pessoal aqui está admirando as vassouras que
meu pai
comprou para o nosso time.
Rony olhou, boquiaberto, as sete magníficas vassouras diante
dele.
— Boas, não são? — disse Draco com a voz macia. — Mas quem sabe
o
time da Grifinória pode levantar um ourinho e comprar
vassouras novas, também.
Você podia fazer uma rifa dessas Cleansweep 5; imagino que
um museu talvez
queira comprá-las.
O time da Sonserina dava gargalhadas.
— Pelo menos ninguém do time da Grifinória teve de pagar
para entrar —
disse Mione com aspereza. — Entraram por puro talento.
O ar presunçoso de Draco pareceu oscilar.
— Ninguém pediu sua opinião, sua sujeitinha de sangue ruim.
— xingou
ele.
Harry percebeu na hora que Draco dissera uma coisa realmente
ofensiva,
porque houve um tumulto instantâneo em seguida às suas
palavras. Flint teve
que mergulhar na frente de Draco para impedir que Fred e
Jorge se atirassem
contra ele. Alicia gritou com voz aguda:
— Como é que você se atreve! — e Rony mergulhou a mão nas vestes,
puxou a varinha e gritou:
— Você vai me pagar! — e apontou a varinha, furioso, para a cara e
Draco, por baixo do braço de Flint.
Um estrondo muito forte ecoou pelo estádio, e um jorro de
luz verde saiu
da ponta oposta da varinha de Rony, atingiu-o na barriga e o
atirou de costas na
grama.
— Rony! Rony! Você está bem? — gritou Mione.
Rony abriu a boca para falar, mas não saiu nada. Em vez
disso, ele soltou
um poderoso arroto e várias lesmas caíram de sua boca para o
colo.
O time da Sonserina ficou paralisado de tanto rir. Flint, dobrado pela
cintura, tentava se apoiar na vassoura nova. Draco caíra de
quatro, dando
murros no chão. Os alunos da Grifinória agrupavam-se em
torno de Rony, que não
parava de arrotar lesmas enormes. Ninguém parecia querer
tocar nele.
— É melhor levarmos o Rony para a casa de Hagrid, é mais
perto — disse
Harry a Mione, que concordou cheia de coragem, e os dois
levantaram o amigo
pelos braços.
— Que aconteceu, Harry? Que aconteceu? Ele está doente? Mas
você
pode curá-lo, não pode? — Colin descera correndo das arquibancadas e agora
dançava em volta dos meninos que saíam de campo. Rony deu um
enorme
suspiro e mais lesmas rolaram pelo seu peito.
— "Aaah", exclamou Colin, fascinado, erguendo a
máquina fotográfica.
"Pode manter ele parado, Harry?”
— Sai da frente, Colin! — disse Harry com raiva. Ele e Mione
carregaram
Rony para fora do estádio e atravessaram os jardins em
direção à orla da floresta.
— Estamos quase lá, Rony — disse Mione quando a cabana do
guarda-caça tornou-se visível. — Você vai
ficar bom num instante, estamos quase
chegando...
Estavam a uns cinco metros da casa de Hagrid quando a porta
de entrada
se abriu, mas não foi Hagrid que apareceu.
Gilderoy Lockhart, hoje com vestes lilás clarinho, vinha
saindo.
— Depressa, aqui atrás — sibilou Harry, arrastando Rony para
trás de
uma moita próxima. Mione seguiu-o, um tanto relutante.
— É muito simples se você sabe o que está fazendo! —
Lockhart dizia em
voz alta a Hagrid. — Se precisar de ajuda, você sabe onde
estou! Vou-lhe dar uma
cópia do meu livro. Estou surpreso que ainda não o tenha
comprado: vou
autografar um exemplar hoje à noite e mandar para você. Bom,
adeus. — E saiu
em direção ao castelo.
Harry esperou até Lockhart desaparecer de vista, então puxou
Rony da
moita até a porta de Hagrid. Bateram apressados.
Hagrid abriu na mesma hora, parecendo muito rabugento, mas
seu rosto
se iluminou quando viu quem era.
— Estive pensando quando é que vocês viriam me ver, entrem,
entrem,
achei que podia ser o Profº. Lockhart outra vez...
Harry e Mione ajudaram Rony a entrar na cabana
sala-e-quarto, que tinha
uma cama enorme em um canto, uma lareira com um fogo vivo no
outro.
Hagrid não pareceu perturbado com o problema das lesmas de
Rony, que
Harry explicou em poucas palavras enquanto baixava o amigo
em uma cadeira.
— Melhor para fora do que para dentro — disse Hagrid
animado, baixando
com ruído uma grande bacia de cobre na frente do menino. —
Ponha todas para
fora, Rony.
— Acho que não há nada a fazer exceto esperar que a coisa
passe —
disse Mione ansiosa, observando Rony se debruçar na bacia. —
É um feitiço difícil
de fazer em condições ideais, ainda mais com uma varinha
quebrada...
Hagrid ocupou-se pela cabana preparando chá para os meninos.
Seu cão
de caçar javalis, Canino, fazia festas a Harry, sujando-o
todo.
— Que é que Lockhart queria com você, Hagrid? — perguntou
Harry,
coçando as orelhas de Canino.
— Estava me dando conselhos para manter um poço livre de
algas —
rosnou Hagrid, tirando um galo meio depenado de cima da mesa bem esfregada
e pousando nela o bule de chá. — Como se eu não soubesse. E
ainda fez
farol sobre um espírito agourento que ele espantou. Se uma
única palavra do que
disse for verdade eu como a minha chaleira.
Não era hábito de Hagrid criticar professores de Hogwarts, e
Harry olhou-o
surpreso. Mione, porém, disse num tom mais alto do que de
costume:
— Acho que você está sendo injusto. É óbvio que o Profº.
Dumbledore
achou que ele era o melhor candidato para a vaga...
— Ele era o único candidato — disse Hagrid, oferecendo-lhes
um prato
de quadradinhos de chocolate, enquanto Rony tossia e
vomitava na bacia. — E
quero dizer o único mesmo. Está ficando muito difícil
encontrar alguém para
ensinar Artes das Trevas. As pessoas não andam muito
animadas para assumir
esta função. Estão começando a achar que esta enfeitiçada.
Ultimamente
ninguém demorou muito nela.
Agora me contem — disse hagrid, indicando Rony
com a cabeça. — Quem é que ele estava tentando enfeitiçar?
— Malfoy chamou Mione de alguma coisa, deve ter sido muito
ruim porque
ele ficou furioso.
— Foi ruim — disse Rony, rouco, erguendo-se, lívido e suado,
até a
superfície da mesa. — Malfoy chamou Mione de sangue ruim,
Hagrid...
Rony tornou a sumir debaixo da mesa e um novo jorro de
lesmas caiu.
Hagrid pareceu indignado.
— Ele não fez isso!
— Fez sim — confirmou Mione. — Mas eu não sei o que
significa. Percebi
que era uma grosseria muito grande, é claro...
— É praticamente a coisa mais ofensiva que ele podia dizer —
ofegou
Rony, voltando. — Sangue ruim é o pior nome para alguém que nasceu
trouxa, sabe, que não tem pais bruxos. Existem uns bruxos,
como os da família de
Malfoy, que se acham melhores do que todo mundo porque têm o
que as pessoas
chamam de sangue puro. — Ele deu um pequeno arroto, e uma
única lesma caiu
em sua mão estendida. Ele
a atirou à bacia e continuou: — Quero dizer, nós
sabemos que isso não faz a menor diferença. Olha só o
Neville Longbottom, ele
tem sangue puro e sequer consegue pôr um caldeirão em pé do
lado certo.
— E ainda não inventaram um feitiço que a nossa Mione não
saiba fazer
— disse Hagrid orgulhoso, fazendo Mione ficar púrpura de tão
corada.
— É uma coisa
revoltante chamar alguém de...— começou Rony,
enxugando a testa suada com a mão trêmula — sangue sujo,
sabe. Sangue
comum. É ridículo. A maioria dos bruxos hoje em dia é
mestiça. Se não
tivéssemos casado com trouxas teríamos desaparecido da
terra.
Ele teve uma ânsia de vômito e tornou a desaparecer de
vista.
— Bem, não posso censurá-lo por querer enfeitiçar Draco —
disse Hagrid
alto para encobrir o barulho das lesmas que caíam na bacia.
— Mas talvez tenha
sido bom a sua varinha ter errado. Acho que Lúcio Malfoy
viria na mesma hora à
escola se você tivesse enfeitiçado o filho dele. Pelo menos
você não se meteu em
apuros.
Harry teria gostado de lembrar que o apuro não podia ser
pior do que ter
lesmas saindo da boca, mas não pôde; os quadradinhos de
chocolate de Hagrid
tinham grudado seus maxilares.
— Harry — disse Hagrid abruptamente como se tivesse lhe ocorrido um
pensamento repentino. — Tenho uma reclamação sobre você.
Ouvi falar que
andou distribuindo fotos autografadas. Como é que não ganhei
nenhuma?
Furioso, Harry desgrudou os dentes.
— Não andei distribuindo fotos autografadas — disse alterado. —
Se Lockhart continua a espalhar este boato...
Mas, então, ele viu que Hagrid estava rindo.
— Só estou brincando — disse, dando palmadinhas amigáveis
nas costas
de Harry, fazendo-o enfiar a cara na mesa. — Eu sabia que
não tinha dado. Eu
disse a Lockhart que você não precisava fazer isso. Você é
mais famoso do que
ele sem fazer a menor força.
— Aposto como ele não gostou disso — comentou Harry erguendo
a
cabeça e esfregando o queixo.
— Acho que não — respondeu Hagrid, com os olhos cintilando.
— E então
falei que nunca tinha lido um livro dele e ele resolveu ir embora. Quadradinhos
de chocolate, Rony? — acrescentou, ao ver Rony reaparecer.
— Não, obrigado — disse o menino, fraco. — É melhor não.
— Venham ver o que andei plantando — convidou Hagrid quando
Harry
e Mione terminaram de beber o chá.
Na pequena horta nos fundos da casa havia uma dúzia das
maiores
abóboras que Harry já vira. Cada uma tinha o tamanho de um
pedregulho.
— Estão crescendo bem, não acha? — perguntou Hagrid alegre.
— Para
a Festa das Bruxas... Até lá já devem estar bem grandes.
— Que é que você está pondo na terra? — perguntou Harry.
Hagrid espiou por cima do ombro para ver se estavam
sozinhos.
— Bom, tenho dado, sabe, uma ajudinha...
Harry reparou no guarda-chuva florido de Hagrid encostado na
parede dos
fundos da cabana. Harry sempre tivera razões para acreditar
até aquele momento
que aquele guarda-chuva não era bem o que parecia; na
verdade, tinha a forte
impressão de que a velha varinha escolar de Hagrid se escondia dentro dele. O
guarda-caça fora expulso de Hogwarts no terceiro ano, mas
Harry nunca
descobrira a razão — era só mencionar o assunto, e ele pigarreava alto e se
tornava misteriosamente surdo até que se mudasse de assunto.
— Um feitiço de engorda? — perguntou Mione, num tom de quem
se
diverte e desaprova. — Bem, você fez um bom trabalho.
— Foi o que a sua irmãzinha disse — comentou Hagrid, fazendo
sinal a
Rony. -Encontrei-a ainda ontem — Hagrid olhou de esguelha
para Harry, a barba
mexendo.
— Ela me disse que estava só dando uma olhada pelos jardins,
mas eu
calculo que estava na esperança de encontrar alguém na minha
casa. — E piscou
para Harry. — Se alguém me perguntasse, ela é uma que não
recusaria uma
foto...
— Ah, cala a boca — disse Harry. Rony deu uma risada abafada
e o chão
ficou cheio de lesmas.
— Cuidado! — rugiu Hagrid, puxando Rony para longe das suas
preciosas
abóboras.
Era quase hora do almoço e como Harry só comera uns
quadradinhos de
chocolate desde o amanhecer, estava doido para voltar à
escola e almoçar. Eles
se despediram de Hagrid e regressaram ao castelo. Rony
tossia de vez em
quando, mas só vomitou duas lesminhas.
Mal tinham entrado no saguão quando ouviram uma voz.
— Aí estão vocês, Potter, Weasley. — A Profª. McGonagall
veio em
direção a eles, com a cara séria. — Vocês dois vão cumprir
suas detenções hoje à
noite.
— O que nós fizemos, professora? — perguntou Rony, contendo,
nervoso,
um arroto.
— Você vai polir as pratas na sala de troféus com o Sr.
Filch. E nada de
magia, Weasley, no muque.
Rony engoliu em seco. Argo Filch, o zelador, era detestado por todos os
alunos da escola.
— E você, Potter, vai ajudar o Profº. Lockhart a responder
as cartas
dos fãs.
— Ah, não... Professora, não posso ir também para a sala de
troféus? —
perguntou Harry desesperado.
— É claro que não — respondeu ela, erguendo as sobrancelhas. — O
Profº. Lockhart fez questão de que fosse você. Oito horas em
ponto, os dois.
Harry e Rony entraram curvados no Salão Principal, no pior
estado de
ânimo possível, Hermione atrás deles, com aquela expressão
Bom-vocês-desobedeceram-o-regulamento.
Harry nem apreciou o empadão tanto quanto pretendera. Os dois, ele e
Rony, acharam que tinham se dado muito mal.
— Filch vai me prender lá a noite inteira — disse Rony, com
a voz
deprimida. — Nada de magia! Deve ter umas cem taças naquela
sala. Não
entendo nada de limpeza de trouxas.
— Eu trocaria com você numa boa — disse Harry num tom calmo.
—
Treinei um bocado com os Dursley. Responder as cartas dos
fãs de Lockhart... Ele
vai ser um pesadelo...
À tarde de sábado pareceu se evaporar no que pareceu um
segundo, já
eram cinco para as oito, e Harry já ia se arrastando pelo
corredor do segundo
andar em direção à sala de Lockhart. Cerrou os dentes e
bateu na porta.
A porta se escancarou na mesma hora. Lockhart sorria para
ele.
— Ah, aqui temos o bagunceiro! — exclamou. — Entre,
Harry, Rebrilhando nas paredes, à luz das muitas velas, havia
uma quantidade de
fotografias emolduradas de Lockhart. Havia até algumas
autografadas. Outra
grande pilha aguardava sobre a mesa.
— Você pode endereçar os envelopes! — disse Lockhart a Harry
como se
isso fosse um prêmio. — O primeiro vai para Gladys Gudgeon,
que Deus a
abençoe, uma grande fã minha...
Os minutos se arrastaram. Harry deixou a voz de Lockhart
passar por ele,
respondendo ocasionalmente "Hum" e
"Certo" e "Sim". Vez por outra, ele
captava uma frase do tipo "A fama é um amigo infiel,
Harry" ou "A celebridade é o
que ela faz, lembre-se disto".
As velas foram se consumindo, fazendo a luz dançar sobre os
muitos
rostos de Lockhart que o observavam. Harry estendeu a mão
dolorida para o que
lhe pareceu ser o milésimo envelope, e escreveu o endereço de Veronica
Smethley. Deve estar quase na hora de sair pensou Harry
infeliz, por favor, tomara
que esteja quase na hora...
Então ele ouviu uma coisa — uma coisa muito diferente do
ruído das velas
que espirravam já no finzinho e a tagarelice de Lockhart
sobre os fãs.
Foi uma voz, uma voz de congelar o tutano dos ossos, uma voz
venenosa
e gélida de tirar o fôlego.
— Venha... Venha para
mim... Me deixe rasgá-lo... Me deixe
rompê-lo...
Me deixe matá-lo...
Harry deu um enorme pulo e, com isso, fez aparecer um enorme
borrão na
Rua de Veronica Smethley.
— Que! — exclamou em voz alta.
— Eu sei! — disse Lockhart. — Seis meses inteiros
encabeçando a lista
dos livros mais vendidos! Bati todos os recordes!
— Não — disse Harry assustado. — Essa voz!
— Perdão? — disse Lockhart, parecendo intrigado. — Que voz?
— Aquela, a voz que disse, o senhor não ouviu?
Lockhart estava olhando para Harry muito surpreso.
— Do que é que você está falando, Harry? Talvez você esteja
ficando com
sono? Nossa, olhe só a hora! Estamos aqui há — quase quatro horas! Eu nunca
teria acreditado, o tempo voou, não acha?
Harry não respondeu. Apurava os ouvidos para captar
novamente a voz,
mas não havia som algum exceto Lockhart a lhe dizer que não
devia esperar uma
moleza como aquela todas as vezes que pegasse uma detenção.
Sentindo-se
atordoado, Harry foi-se embora.
Era tão tarde que a sala comunal da Grifinória estava quase
vazia.
Harry subiu direto ao dormitório. Rony ainda não voltara.
Harry vestiu o
pijama, meteu-se na cama e esperou. Meia hora depois, Rony
apareceu,
aconchegando o braço direito e trazendo um forte cheiro de liquido de polimento
para o quarto escuro.
— Os meus músculos estão em cãibra — gemeu, afundando-se na
cama.
— Catorze vezes ele me fez dar brilho naquela taça de
Quadribol antes de ficar
satisfeito. E tive
mais um acesso de lesmas em cima de um prêmio especial por
serviços prestados à escola. Levou séculos para retirar as
lesmas... Como foi com
o Lockhart?
Em voz baixa para não acordar Neville, Dino e Simas, Harry
contou a
Rony exatamente o que ouvira.
— E Lockhart disse que não estava ouvindo nada? — perguntou
Rony.
Harry podia até vê-lo franzindo a testa ao luar. — Você acha
que ele
estava mentindo? Mas não entendo, mesmo alguém invisível
teria tido que abrir a
porta.
— Eu sei — disse Harry, recostando-se na cama de colunas e
fixando o
olhar no dossel. — Eu também não entendo.
CAPÍTULO OITO
A Festa do Aniversário de Morte
Outubro chegou, espalhando, pelos jardins, uma friagem úmida
que
entrava pelo castelo.
Madame Pomfrey, a enfermeira, esteve multo ocupada com uma
repentina
onda de gripe entre professores, funcionários e alunos. Sua
poção reanimadora
fazia efeito instantâneo, embora deixasse quem a bebia
fumegando pelas orelhas
durante muitas horas. Gina Weasley, que andava pálida, foi
intimada por Percy a
tomar a poção. A fumaça saindo por baixo dos seus cabelos
muito vivos dava a
impressão de que a cabeça inteira estava em chamas.
Gotas de chuva do tamanho de balas de revólver fustigavam as
janelas do
castelo durante dias seguidos; as águas do lago subiram, os canteiros de flores
viraram um rio lamacento, e as abóboras de Hagrid ficaram do
tamanho de um
barraco. O entusiasmo de Olívio Wood pelas sessões de
treinamento regulares,
no entanto, não esfriou, razão por que Harry pôde ser
encontrado, no fim de uma
tarde de sábado tempestuosa, nas vésperas do Dia das Bruxas,
voltando à torre
da Grifinória, encharcado até os ossos e coberto de lama.
Mesmo tirando a chuva e o vento não fora um treino alegre.
Fred e Jorge,
que tinham andado espionando o time da Sonserina, tinham
visto com os próprios
olhos a velocidade das novas Nimbus 2001. Eles comentaram
que o time da
Sonserina parecia sete borrôezinhos cortando o céu com a
velocidade de mísseis.
Quando Harry vinha acabrunhado pelo corredor deserto
encontrou alguém
que parecia tão preocupado quanto ele. Nick Quase Sem
Cabeça, o fantasma da
torre da Grifinória, olhava desanimado pela janela,
murmurando para si mesmo "...
Não satisfaz os requisitos... Pouco mais de um centímetro,
se tanto...”
— Oi, Nick — cumprimentou Harry.
— Olá, olá — assustou-se ele olhando para os lados. Usava um
elegante
chapéu emplumado sobre a longa cabeleira crespa e uma túnica
com rufos, que
escondia o fato do seu pescoço estar quase completamente
separado da cabeça.
Nick era transparente como fumaça, e Harry via através dele
o céu escuro e a
chuva torrencial lá fora.
— Você parece preocupado, jovem Potter —, disse Nick,
dobrando, ao
falar, uma carta transparente e guardando-a no interior do
gibão.
— Você também — disse Harry.
— Ah — Nick Quase Sem Cabeça fez um aceno com a mão elegante
—
uma questão de menor importância... Não é que eu queira
realmente entrar...
Achei que devia me candidatar, mas pelo visto "não
satisfaço as exigências"...
Apesar do seu tom leve, tinha no rosto uma expressão de
muita amargura.
— Mas a pessoa pensaria, não é — disse ele de repente,
tirando mais
uma vez a carta do bolso — que ter levado quarenta e cinco
golpes de
machado cego no pescoço qualificaria alguém a entrar para a
Caça Sem Cabeça?
— Ah, sim — respondeu Harry, que obviamente deveria
concordar.
— Quero dizer, ninguém gostaria mais do que eu que o corte
tivesse sido
rápido e limpo, e que minha cabeça tivesse realmente caído,
quero dizer, teria me
poupado muita dor e ridículo. No entanto... — Nick Quase Sem
Cabeça abriu a
carta com uma sacudidela e leu furioso:
“Só podemos aceitar
caçadores cujas cabeças tenham se
separado dos corpos. O senhor compreenderá que, do
contrário,
seria impossível os sócios participarem das atividades de
caça
como: Balanço de Cabeça à Cavalo e Pólo de Cabeça. É com o
maior pesar, portanto, que devemos informar-lhe que o senhor
não satisfaz as nossas exigências.
Com os nossos cumprimentos,
Sir Patrício Delanqy-Podmore.”
Espumando de raiva,
Nick Quase sem cabeça guardou a carta.
— Pouco mais de um centímetro, se tanto..." de
pele..." e um tendão
seguram minha cabeça, Harry! A maioria das pessoas acharia
que fui decapitado,
mas ah, não, não é o bastante para o Sr. Realmente
Decapitado Podmore.
Nick Quase Sem Cabeça respirou fundo várias vezes e então
disse, num
tom muito mais calmo:
— Então... O que é que o está preocupando? Tem alguma coisa
que eu
possa fazer?
— Não — disse Harry. — A não ser que saiba onde podemos
arranjar sete
Nimbus 2001 de graça para o nosso jogo contra Sonse...
O resto da frase de Harry foi abafado por um miado agudo de
alguém
junto aos seus calcanhares. Ele olhou e deu com um par de olhos amarelos que
mais pareciam globos de luz. Era Madame Nor-r-ra, a gata
esquelética e cinzenta
que o zelador, Argo Filch, usava como uma espécie de
delegada na sua luta
incansável contra os estudantes.
— É melhor você sair daqui, Harry — disse Nick depressa. —
Filch não
está de bom humor, pegou a gripe, e uns alunos do terceiro ano sem
querer grudaram miolos de sapo pelo teto da masmorra cinco.
Ele esteve
limpando a manhã inteira e se vir você pingando lama para
todo lado...
— Certo — disse Harry se afastando do olhar acusador de
Madame Nor-r-ra, mas não foi suficientemente rápido. Atraído ao local pela
força misteriosa que
parecia ligá-lo àquela gata nojenta, Argo Filch irrompeu de
repente pela tapeçaria
à direita de Harry, chiando furioso à procura do infrator.
Trazia um lenço de grossa
lã escocesa amarrado à cabeça e seu nariz estava
estranhamente purpúreo.
— Sujeira! — gritou, os maxilares tremendo, os olhos
assustadoramente
saltados, apontando a poça de lama que pingava das vestes de Quadribol
de Harry. — Bagunça e sujeira por toda parte! Para mim,
chega, é o que lhe digo.
Venha comigo, Potter!
Então Harry acenou um triste adeus a Nick Quase Sem Cabeça e
acompanhou Filch ao andar de baixo, duplicando o número de
pegadas de lama
no assoalho.
Harry nunca estivera no interior da sala de Filch antes; era
um lugar que a
maioria dos estudantes evitava, O local era encardido e
escuro, sem janelas,
iluminado por uma única lâmpada de óleo pendurada no
teto baixo. Um leve
cheiro de peixe frito impregnava a sala.
Arquivos de madeira estavam dispostos ao longo das paredes;
pelas
etiquetas, Harry pôde ver que continham detalhes sobre cada
aluno que Filch já
castigara. Fred e Jorge Weasley tinham uma gaveta separada.
Uma coleção
muitíssimo polida de correntes e algemas estava pendurada na
parede atrás da
mesa de Filch. Era do conhecimento geral que ele estava
sempre pedindo a
Dumbledore que o deixasse pendurar os alunos no teto pelos
tornozelos.
Filch pegou uma pena no tinteiro em cima da mesa e começou a
procurar
um pergaminho.
— Bosta — resmungou furioso —, bosta frita de dragão...
Miolos de
sapos... Tripas de ratos... Para mim já chega... Vou fazer
disto um exemplo...
Onde está o formulário... Aqui...
Ele retirou um grande rolo de pergaminho da gaveta da
escrivaninha e
abriu-o à sua frente, mergulhando a longa pena negra no
tinteiro.
— Nome... Harry Potter. Crime...
— Foi só um pouquinho de lama! — exclamou Harry.
— Foi só um pouquinho de lama para você, moleque, mas para mim é
mais uma hora de limpeza! —
gritou Filch, uma gota nojenta estremecendo na
ponta do nariz de bolota. — Crime... Sujar o castelo...
Sentença sugerida..
Filch, secando o nariz sempre a pingar, lançou um olhar
desagradável a
Harry, que esperava prendendo a respiração, a sentença
desabar sobre sua
cabeça.
Mas quando Filch baixou a pena, ouvi-se um forte estampido no teto da
sala, que fez a lâmpada a óleo chocalhar.
— PIRRAÇA! — rugiu Filch, atirando a pena no chão num assomo
de
raiva. — Desta vez eu te pego, eu te pego!
E sem nem olhar para Harry, Filch saiu correndo da sala, com
Madame
Nor-r-ra do lado.
Pirraça era o poltergeist da escola, uma ameaça aérea e
sorridente que
vivia a provocar desordem e aflição. Harry não gostava muito
do Pirraça, mas não
pôde deixar de se sentir grato pelo seu senso de oportunidade. Era de esperar,
seja o que for que Pirraça tivesse feito (e parecia que
desta vez estragara alguma
coisa muito importante), desviasse a atenção de Filch de
Harry.
Achando que devia provavelmente esperar Filch voltar, Harry
afundou em
uma cadeira comida por traças ao lado da escrivaninha. Sobre ela só havia
uma coisa além do formulário incompleto: um envelope roxo,
grande e
brilhante com letras prateadas na face. Com uma olhada
rápida à porta para ver
se Filch já estava voltando, Harry apanhou o envelope e leu:
FEITICEXPRESSO
Um curso de magia por
correspondência para
principiantes.
Intrigado, Harry
sacudiu o envelope aberto e puxou o maço de
pergaminhos que havia dentro, com inscrições prateadas
dizendo:
Você se sente antiquado
no mundo da magia moderna?
Vê-se inventando desculpas para não executar feitiços
simples?
Ouve caçoadas por manejar
tão mal uma varinha de
condão?
Feiticexpresso é um curso inteiramente novo, que garante
resultados rápidos e fácil assimilação.
Centenas de bruxos e bruxas
já se beneficiaram com o
método do Feiticexpresso!
Madame Z. Nettles of Topsham nos escreve:
"Eu não tinha memória para guardar encantamentos e
minhas poções eram motivo de riso na família! Agora, depois
do
curso Feiticexpresso, sou o centro das atenções nas festas,
e
meus amigos me pedem a receita da Minha Solução Cintilante!”
Bruxo D. J. Prod of Didsbury nos conta:
"Minha mulher costumava caçoar dos meus feitiços pouco
eficientes, mas depois de um mês no seu fabuloso
Feiticexpresso
consegui transformá-la num iaque! Muito obrigado,
Feiticexpresso!
Fascinado, Harry correu os dedos pelo resto do conteúdo do
envelope.
Para que na vida Filch queria um curso feiticexpresso? Será
que isto queria dizer
que ele não era um bruxo formado? Harry estava começando a
ler a "Lição Um:
Como segurar sua varinha (Algumas dicas úteis)" quando
o ruído de passos
arrastados pelo corredor lhe avisara que Filch estava
voltando. Harry enfiou o
pergaminho de volta no envelope e atirou-o sobre a mesa
pouco antes da porta se
abrir.
Filch exibia um ar triunfante.
— Aquele armário que desaparece foi muitíssimo valioso! —
disse todo
alegre à Madame Nor-r-ra. — Vamos acabar com o Pirraça desta
vez, minha
doce...
Seus olhos pousaram em Harry
e daí correram para o envelope
do Feiticexpresso que, o garoto percebeu tarde demais, fora
colocado meio metro
mais longe do que estava antes.
A cara cerosa de Filch ficou vermelho-tijolo. Harry se
preparou para uma
maré de fúria. Filch capengou até a escrivaninha,
agarrou o envelope e jogou-o
dentro de uma gaveta.
— Você... Você leu...?-gaguejou.
— Não — mentiu Harry depressa.
Filch torcia as mãos nodosas.
— Se eu sonhar que você leu a minha, minha não, a
correspondência de
um amigo, seja como for, mas...
Harry olhava fixo para ele, assustado; Filch nunca parecera
mais furioso.
Seus olhos saltavam, um tique nervoso estremecia sua bochecha
mole, e o
lenço escocês não melhorava sua aparência.
— Muito bem, pode ir, e não diga uma palavra, não que...
Mas, se você
não leu, vá logo, tenho que fazer o relatório sobre o
Pirraça, va...
Espantado com a sua sorte, Harry saiu correndo da sala e tomou o
corredor de volta para o saguão. Escapar da sala de Filch
sem castigo
provavelmente era uma espécie de recorde na escola.
— Harry! Harry! Funcionou?
Nick Quase Sem Cabeça saiu deslizando de uma sala de aula.
Atrás dele,
Harry pôde ver os destroços de um grande armário preto e
dourado que parecia
ter sido jogado de uma grande altura.
— Convenci Pirraça a largá-lo bem em cima da sala de Filch —
disse Nick
ansioso. — Achei que iria distraí-lo...
— Aquilo foi você? — perguntou Harry, grato. — Funcionou sim, eu não
peguei nem uma detenção. Obrigado, Nick!
Os dois saíram juntos pelo corredor. Nick Quase Sem Cabeça,
Harry
reparou, ainda segurava a carta de recusa de Sir Patrício.
— Eu gostaria de poder fazer alguma coisa sobre a Caça Quase
Sem
Cabeça — comentou Harry.
Nick Quase Sem Cabeça parou de repente, e Harry passou por
dentro
dele. Gostaria de não ter feito isso; era como entrar
embaixo de um chuveiro
gelado.
— Mas tem uma coisa que você pode fazer por mim — disse Nick
animado. — Harry, seria pedir muito, mas, não, você não
iria...
— Aonde?
— Bem, este Dia das Bruxas será o meu qüingentésimo
aniversário de
morte — disse Nick Quase Sem Cabeça, empertigando-se com o
ar solene.
— Ah — exclamou Harry, sem saber se devia fazer cara triste ou alegre
com a notícia. — Certo.
— Estou dando uma festa em uma das masmorras maiores. Vêm
amigos
de todo o país. Seria uma honra tão grande se você pudesse comparecer! O Sr.
Weasley e a Srta. Granger também seriam muito bem-vindos, é
claro, mas você
não vai preferir comparecer à festa da escola? — Ele
observava Harry cheio de
dedos.
— Não — disse Harry depressa —, eu vou...
— Meu caro rapaz! Harry Potter no meu aniversário de morte! E... —
hesitou, parecendo agitado — você acha que seria possível mencionar a Sir
Patrício que me acha muito assustador e impressionante?
— Claro... Claro.
O rosto de Nick Quase Sem Cabeça se abriu num grande
sorriso.
— Uma festa de aniversário de morte? — disse Hermione muito
interessada quando Harry finalmente trocou de roupa e foi-se
reunir a ela e a Rony
na sala comunal.
— Aposto que não existe muita gente viva que possa dizer que
foi a uma
festa dessas, vai ser fascinante!
— Por que alguém iria querer
comemorar o dia em que morreu? —
exclamou Rony, que estava quase terminando o dever de
Poções, mal-humorado.
— Me parece uma coisa mortalmente deprimente...
A chuva continuava a açoitar as janelas, que agora estavam
pretas feito
tinta, mas dentro da sala tudo parecia claro e alegre. As chamas da lareira
iluminavam as inúmeras poltronas fofas onde os alunos
estavam sentados lendo,
conversando, fazendo o dever de casa ou, no caso de Fred e
Jorge Weasley,
tentando descobrir o que aconteceria se a pessoa fizesse uma
salamandra comer
um fogo Filibusteiro. Fred "salvara" o lagarto de
couro laranja, que vive no fogo, de
uma aula de O Trato das Criaturas Mágicas, e ele agora
fumegava suavemente
em cima de uma mesa rodeada de meninos curiosos.
Harry ia começar a contar a
Rony e Mione sobre Filch e o
curso Feiticexpresso quando, de repente, a salamandra saiu
rodopiando
descontrolada pelo ar, soltando fagulhas e estampidos. A
visão de Percy berrando
de ficar rouco com Fred e Jorge, a exibição espetacular de
estrelas cor de
tangerina que jorravam da boca da salamandra e sua fuga para
a lareira,
acompanhada de explosões, afugentaram Filch e o envelope do
Feiticexpresso da
cabeça de Harry.
Até chegar o Dia das Bruxas, Harry já se arrependera de sua promessa
precipitada de ir à festa do aniversário de morte. O resto
da escola estava
animado com a proximidade da Festa das Bruxas; o Salão
Principal fora decorado
com os morcegos vivos de sempre, as enormes abóboras de
Hagrid tinham sido
recortadas para fazer lanternas tão grandes que cabiam três
homens dentro, e
havia boatos de que Dumbledore contratara uma trupe de
esqueletos dançarinos
para divertir o pessoal.
— Promessa é dívida — Mione lembrou a Harry com ar de
mandona. —
Você disse que iria ao aniversário de morte.
Então, às sete horas, Harry, Rony e Mione passaram direto
pela porta do
Salão Principal apinhado de gente, que brilhava convidativo
com pratos de ouro
e velas, e tomaram o caminho das masmorras.
O corredor que levava à festa de Nick Quase Sem Cabeça tinha
sido
iluminado, também, com velas em toda a sua extensão, embora
o efeito não fosse
nada alegre: eram velas longas, finas e pretas, de luz azul,
que projetavam uma
claridade fantasmagórica mesmo nos rostos de gente viva. A
temperatura caía a
cada passo que davam. Quando Harry estremeceu e puxou as
vestes mais para
junto do corpo, ouviu um som que lembrava mil unhas
arranhando um imenso
quadro-negro.
— Será que isso é música? — cochichou Rony. Eles dobraram um
canto e
viram Nick Quase Sem Cabeça parado em um portal adornado com
reposteiros de
veludo negro.
— Meus caros amigos — disse ele pesaroso. — Sejam
bem-vindos,
sejam bem-vindos... Fico tão contente que tenham podido
vir...
E tirou o chapéu emplumado fazendo uma reverência e
indicando a porta.
Era uma cena incrível. A masmorra continha centenas de
pessoas
esbranquiçadas e translúcidas, a maioria deslizando por uma
pista de dança,
valsando ao som medonho de trinta serrotes musicais, tocados
por uma orquestra
reunida em cima de uma plataforma drapeada de negro. Um lustre no alto
projetava uma luz azul meia-noite com outras mil velas negras. A respiração dos
garotos se condensava, formando uma névoa à frente deles;
parecia que estavam
entrando em uma câmara frigorífica.
— Vamos dar uma circulada? — sugeriu Harry, querendo
esquentar os
pés.
— Cuidado para não atravessar ninguém — recomendou Rony,
nervoso, e
os três saíram contornando a pista de dança. Passaram por um grupo de
freiras soturnas, um homem vestido de trapos que usava correntes e o Frade
Gordo, um alegre fantasma da Lufa-Lufa, que conversava com
um cavalheiro que
tinha uma flecha espetada na testa. Harry não se surpreendeu
ao ver que os
outros fantasmas davam distância ao Barão Sangrento, um
fantasma
da Sonserina, muito magro, de olhos arregalados e coberto de
manchas de
sangue prateado.
— Ah, não — exclamou Mione, parando de repente. — Dêem
meia-volta,
dêem meia volta, não quero falar com a Murta Que Geme...
— Quem? — perguntou Harry ao retrocederem.
— Ela assombra um boxe no banheiro das meninas no primeiro
andar —
disse Mione.
— Ela assombra um boxe?
— É. O boxe esteve quebrado o ano inteiro porque ela não
pára de ter
acessos de raiva e inundar o banheiro. Eu nunca entrei lá
sempre que pude evitar;
é horrível tentar fazer xixi com ela gemendo do lado...
— Olhem, comida! — exclamou Rony.
Do lado oposto da masmorra havia uma longa mesa, também
coberta de
veludo negro.
Eles se aproximaram pressurosos, mas no instante seguinte
pararam de
chofre, horrorizados. O cheiro era bem desagradável. Grandes
peixes podres
estavam dispostos em belas travessas de prata; bolos
carbonizados estavam
arrumados em salvas; havia uma grande terrina de picadinho
de miúdos de
carneiro cheio de vermes, um pedaço de queijo coberto de uma
camada de mofo
esverdeado e, o orgulho do bufê, um enorme bolo cinzento em
forma de sepultura,
com os dizeres em glacê de asfalto: SIR NICOLAS DE MIMSY-PORPINGTON FALECIDO EM
31 DE OUTUBRO DE 1492.
Harry observou, espantado, um fantasma imponente se
aproximar da
mesa, abaixar-se e atravessá-la, a boca aberta de modo a
engolir um salmão
fedorento.
— O senhor pode provar a comida quando a atravessa? —
perguntou-lhe
Harry.
— Quase — respondeu o fantasma triste e se afastou.
— Imagino que tenham deixado o peixe apodrecer para acentuar
o gosto
— disse Mione em tom de quem sabe das coisas, apertando o
nariz e se
debruçando para examinar o picadinho pútrido.
— Podemos ir andando? Estou me sentindo enjoado — disse
Rony.
Nem bem tinham se virado, porém, quando um homenzinho saiu
voando
de repente de debaixo da mesa e parou no ar diante deles.
— Alô, Pirraça — cumprimentou Harry cauteloso.
Ao contrário dos fantasmas à volta, Pirraça, o poltergeist
era o oposto de
pálido e transparente. Usava um chapéu de festa
laranja-vivo, uma gravata-borboleta giratória e exibia um largo sorriso
no rosto largo e maldoso.
— Aperitivos — disse simpático, oferecendo aos garotos uma tigela de
amendoins cobertos de fungo.
— Não, muito obrigada — disse Mione.
— Ouvi você falando da coitada da Murta — disse Pirraça, os olhos
dançando. — Que grosseria com a coitada. — Ele tomou fôlego e berrou: — OI!
MURTA!
— Ah, não, Pirraça, não conte a ela o que eu disse, ela vai
ficar realmente
chateada — cochichou
Mione frenética. — Não falei por mal, ela não me
incomoda, ah, alô, Murta.
O fantasma atarracado de uma moça deslizou até eles. Tinha a
cara mais
triste que Harry já vira, meio oculta por cabelos escorridos
e espessos, e óculos
perolados.
— Que foi? — perguntou aborrecida.
— Como vai, Murta? — cumprimentou Mione fingindo animação. —
Que
bom ver você fora do banheiro.
Murta fungou.
— A Srta. Granger estava mesmo falando em você... — disse
Pirraça sonsamente ao ouvido da Murta.
— Só estava dizendo... Dizendo... Como você está bonita esta
noite —
completou Mione, fechando a cara para Pirraça.
Murta olhou para Mione desconfiada.
— Você está caçoando de mim — disse, lágrimas prateadas
marejando
rapidamente os seus olhos penetrantes.
— Não, sério, eu não acabei de falar como a Murta está
bonita? —
falou Mione, cutucando dolorosamente Harry e Rony nas
costelas.
— Ah, claro...
-Falou...
— Não mintam para mim — exclamou Murta, as lágrimas agora
escorrendo livremente pelo rosto, enquanto Pirraça, feliz,
dava risadinhas por cima
do ombro dela. — Vocês acham que não sei como as pessoas me
chamam pelas
costas? Murta Gorda! Murta Feiosa! Murta infeliz, chorona,
apática!
— Você esqueceu do espinhenta — sibilou Pirraça ao ouvido
dela.
A Murta Que Geme prorrompeu em soluços aflitos e fugiu da
masmorra.
Pirraça disparou atrás dela, jogando amendoins mofados e
gritando:
— Espinhenta! Espinhenta!
— Ah, meu Deus! — lamentou-se Hermtone.
Nick Quase Sem Cabeça agora deslizava por entre os
convidados em
direção aos garotos.
— Estão se divertindo?
— Ah, claro — mentiram.
— Um número de convidados bem grande — disse Nick Quase Sem
Cabeça, orgulhoso. — A rainha viúva veio lá de Kent... Está quase na hora do
meu discurso, é melhor eu ir avisar a orquestra...
A orquestra, porém, parou
de tocar naquele exato instante. E, todas as
pessoas na masmorra se calaram, olhando para os lados excitadas,
ao ouvirem
uma trompa de caça.
— Ah, lá vamos nós — disse Nick Quase Sem Cabeça amargurado.
Pelas paredes da masmorra irromperam doze cavalos fantasmas,
cada
um montado por um cavaleiro sem cabeça. Os convidados aplaudiram
calorosamente. Harry começou a aplaudir, também, mas parou
depressa ao ver a
cara de Nick.
Os cavalos galoparam até o meio da pista de dança e pararam,
levantando e baixando as patas dianteiras. A frente da
cavalgada havia um
fantasma corpulento que segurava a cabeça sob o braço,
posição de onde ele
tocava a trompa. O fantasma apeou, levantou a cabeça no ar
de modo que
pudesse ver as pessoas (todos riram) e se dirigiu a Nick Quase Sem Cabeça,
recolocando a cabeça sobre o pescoço.
— Nick! — rugiu. — Como vai? A cabeça ainda pendurada?
Ele soltou uma gargalhada cordial e deu uma palmadinha no ombro de
Nick Quase Sem Cabeça.
— Seja bem-vindo, Patrício — disse Nick secamente.
— Gente viva! — exclamou Sir Patrício, vendo Harry, Rony e
Mione, e
dando um grande pulo fingindo espanto, de modo que sua cabeça tornou a cair
(os convidados gargalharam).
— Muito engraçado — disse Nick Quase Sem Cabeça com
ferocidade.
— Não liguem para o Nick! — gritou a cabeça de Sir Patrício
lá do chão.
— Ainda está aborrecido porque não o deixamos se associar à
Caçada! Mas
quero dizer... Olhem só para ele...
— Acho — disse Harry depressa, a um olhar significativo de
Nick —, Nick
é muito... Assustador e...
— Ha! — gritou a cabeça de Sir Patrício. — Aposto como ele
lhe pediu
para dizer isso!
— Se todos pudessem me dar atenção, está na hora do meu
discurso! —
avisou Nick Quase Sem Cabeça em voz alta, caminhando com
firmeza até o pódio
e tomando posição sob a luz de um refletor azul-gelo.
— Meus saudosos cavalheiros,
damas e senhores, tenho o grande
pesar...
Mas ninguém ouviu muito mais do que isso. Sir Patrício e os
Caçadores
Sem Cabeça começaram uma partida de hóquei de cabeça e as
pessoas foram se
virando para assistir. Nick Quase Sem Cabeça tentou em vão
reconquistar sua
platéia, mas desistiu quando a cabeça de Sir Patrício passou
navegando por ele
em meio aos berros de vivas.
Harry, por esta altura, estava sentindo muito frio, para não
falar na fome.
— Não dá para agüentar muito mais que isso — murmurou Rony,
os
dentes batendo, quando a orquestra tornou a entrar em ação, e os fantasmas
voltaram à pista de dança.
— Vamos — concordou Harry.
Os três saíram em direção à porta, acenando com a cabeça e
sorrindo
para todos que olhavam, e um minuto depois estavam andando
depressa
pelo corredor cheio de velas.
— Talvez o pudim ainda não tenha acabado — disse Rony
esperançoso,
seguindo à frente em direção à escada do saguão de entrada.
E então Harry ouviu: “Rasgar... romper... matar..”
Era a mesma voz, a mesma voz gélida e assassina que ouvira
na sala
de Lockhart.
Ele parou quase tropeçando, apoiando-se na parede de pedra,
escutando
com toda a atenção, olhando para os lados, apertando os
olhos para ver nos dois
sentidos do corredor mal iluminado.
— Harry, que é que você...?
— É aquela voz de novo, fiquem quietos um minuto...
"Tanta fome... Tanto
tempo...”
— Ouçam! — disse Harry com urgência, e Rony e Mione pararam,
observando-o.
“Matar.. Hora de matar...”
A voz foi ficando mais fraca. Harry tinha certeza de que
estava se
afastando — se afastando para o alto. Uma mistura de medo e excitação se
apoderou dele ao fixar o olhar no teto escuro; como é que
ela podia estar se
afastando para o alto? Seria um fantasma, para quem tetos de
pedra não faziam
diferença?
— Por aqui — gritou ele e começou a subir correndo as
escadas para o
saguão. Não adiantava querer ouvir nada ali, o vozerio na
festa do Salão Principal
ecoava pelo saguão. Harry subiu correndo a escadaria de
mármore até o primeiro
andar, com Rony e Mione nos seus calcanhares.
— Harry, que é que estamos...
— PSIU!
Harry apurou os ouvidos. Longe, vinda do andar de cima, cada
vez mais
fraca, ele ouviu a voz: "... Sinto cheiro de sangue...
SINTO CHEIRO DE
SANGUE!" Sentiu um aperto no estômago...
— Vai matar alguém! — gritou ele, e sem dar atenção aos
rostos
perplexos de Rony e Mione, subiu correndo o lance seguinte
de escada, três
degraus de cada vez, tentando escutar apesar do barulho que
seus passos
faziam...
Harry precipitou-se pelo segundo andar, Rony e Mione ofegantes atrás
dele, e não parou até entrar no último corredor deserto.
— Harry, do que é que você estava falando? — perguntou Rony,
enxugando o suor do rosto. — Eu não ouvi nada...
Mas Mione soltou uma súbita exclamação, apontando para o
corredor.
— Olhem!
Alguma coisa brilhava na parede em frente. Eles se
aproximaram devagarinho, apertando os olhos para ver na penumbra. Alguém
tinha pintado palavras de uns trinta centímetros na parede
entre as duas janelas,
que refulgiam à luz das chamas das tochas.
A CÂMARA DOS SEGREDOS FOI ABERTA.
INIMIGOS DO HERDEIRO CUIDADO.
— Que coisa é aquela, pendurada ali embaixo? — perguntou Rony, com
um ligeiro tremor na voz.
Ao se aproximarem, Harry quase escorregou — havia uma grande
poça
de água no chão; Rony e Mione o seguraram, e
continuaram a avançar devagar
até a mensagem, os olhos fixos na sombra escura embaixo. Os
três logo
perceberam o que era e deram um salto para trás espalhando
água.
Madame Nor-r-ra, a gata do zelador, estava pendurada pelo
rabo em um
suporte de tocha. Estava dura como um pau, os olhos
arregalados e fixos.
Durante alguns segundos eles não se mexeram. Então Rony
falou:
— Vamos dar o fora daqui.
— Será que não devíamos tentar ajudar... — começou a dizer
Harry, sem
jeito.
— Confie em mim — disse Rony. — Não podemos ser encontrados
aqui.
Mas era tarde demais. Um ronco, como o de um trovão
distante, informou-lhes que a festa terminara naquele instante. De cada ponta
do corredor onde
estavam, ouviram o barulho de centenas de pés que subiam as
escadas, e a
conversa alta e alegre de gente bem alimentada; no instante
seguinte os alunos
entravam aos encontrões pelos dois lados do corredor.
A conversa, o bulício, o barulho morreu de repente quando os
garotos que
vinham à frente viram o gato pendurado. Harry, Rony e Mione
estavam sozinhos
no meio do corredor e os estudantes que se empurravam para
ver a cena
macabra se calaram.
Então alguém gritou em meio ao silêncio.
— Inimigos do herdeiro, cuidado! Vocês vão ser os próximos,
sangues
ruins!
Era Draco Malfoy. Ele abrira caminho até a frente dos
alunos, seus olhos
frios muito intensos, seu rosto, em geral pálido, corara, e
ele ria diante do
gato pendurado imóvel.
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